3.11.22

O caso dos imparciais e a mentira da mentira

 


«Que a atrapalhação fosse constrangedora, nem haveria dúvida. Proclamar um apoio a Bolsonaro ficava mal para aquela gente que se acabrunharia com a pergunta sobre se o convidava para jantar. O homem é um barril de pólvora, grita inconveniências, tem aquela coisa mal explicada de comprar apartamentos com malas de dinheiro, arrasta uma prole que ele próprio designa como se fossem humanóides da ficção científica, reclama a propriedade do divino mas diz que gostaria de trincar cadáver de índio, é um tormento. Apoiá-lo, assim a modos que apoio mesmo, ficaria mal às pessoas tão elegantes que, se bem que abominando o comunismo que atravanca o mundo, não querem ser fotografados ao lado de um capitãozeco expulso do exército e que depois vagabundeou pelo mundo da política. Pintou um clima durante um tempo, é certo, mas esse deslumbramento com o golpe contra Dilma foi-se esbatendo quando mesmo a Casa Branca começou a afastar-se do sujeito, e o que por lá vai de histórias de amigos suspeitos naquele continente.

Agora, apoiar ou sequer aceitar que a alternativa presente era um metalúrgico, moderado que seja, que quer acabar com a fome no seu país, isso nem pensar. Era preciso, enquanto Bolsonaro acumulou o desastre e caminhava para a derrota, ser imparcial. Que desgosto que aquelas grandes figuras da direita brasileira, capitaneadas pelo seu líder histórico, Fernando Henrique Cardoso, o homem que transformou o mapa político criando o novo partido da situação, tivessem perdido a paciência e apoiado o metalúrgico contra o fascistóide. Deviam ter continuado imparciais, terão pensado os nossos imparciais. A imparcialidade é a virtude do nariz emproado.

Os imparciais raramente usam o argumento de que “aquilo é outro país”. Ficava mal, afinal não serve para a Ucrânia, nem para a Rússia, nem para os Estados Unidos, nem para lado nenhum – não veio um ministro alemão apoiar uns dos nossos imparciais na última eleição? O que dizem é que têm uma objeção moral, coisa séria, é que o metalúrgico seria “corrupto”. E os nossos imparciais, isso de “corrupção” nem querem ver. Deixem-se as histórias caseiras para outra ocasião, e mal ficaria aquela alegação se nos lembrassemos dos submarinos ou de ministro com processos julgados. Fica somente a acusação de que Lula teria sido julgado e condenado e que é horrível, horrível mesmo, entregar o Palácio a um criminoso. Portanto, o valente imparcial soergue-se no seu Rocinante da justiça.

O problema é que isto da justiça tem regras. E o Supremo Tribunal Federal anulou o julgamento de Lula (foi esmagador, por oito votos a três) não considerando só que o então juiz Sérgio Moro era incompetente para julgar – e para prender – como, mais ainda, que era parcial nesse processo. Incompetente e parcial, ou seja, tinha um interesse próprio no resultado que quis impor, leram bem. O processo foi uma trafulhice. Não sei se os imparciais têm noção do que isto quer dizer, mas um desenho pode ajudar: a Justiça brasileira anulou o processo, o que significa que Lula é inocente – o tribunal só determina culpabilidade com condenação, lembram-se do princípio do Direito? - e apontou abuso de poder ao juiz Moro. Ora, o juiz tinha conseguido uma façanha, dominar a política brasileira e anular o adversário de Bolsonaro, foi por isso imediatamente recompensado com um ministério. Se isto é a ideia de justiça dos nossos imparciais, talvez queiram elogiar esta farsa em que um juiz prende um candidato, recebe o pagamento político por isso e depois é indicado pelo Supremo como tendo montado um truque judicial. Depois da mentira de Moro, os nossos imparciais mentem sobre a mentira, para evitarem o incómodo de uma escolha, tolerando assim Bolsonaro e discutindo metafisicamente a espinhosa questão do maior e do menor dos “males”. Afinal, se a justiça não lhes interessa a não ser como mentira, porque havia de lhes interessar a democracia?»

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