9.12.22

Duas colheres de eufemismo de 8 em 8 horas

 

João Fazenda 

«Ou muito me engano ou o ministro da Saúde descobriu finalmente a solução para os problemas do SNS. Confrontado com o facto de o tempo médio de atendimento, nas urgências do Hospital de Santa Maria, superar as 11 horas, Manuel Pizarro disse que não se verifica um cenário de caos, mas sim de grande dificuldade. Os utentes que nesse dia tinham entrado na urgência às oito da manhã e às 19 horas ainda não tinham sido atendidos devem ter suspirado de alívio. Uma coisa é uma pessoa estar metida no caos, outra é estar meramente envolvida em grandes dificuldades. Quaisquer cinco minutos de caos custam mais do que 11 horas de grande dificuldade. O ideal seria que o ministro aplicasse o mesmo tratamento eufemístico a todo o universo da saúde. Chamar “urgências” às urgências é capaz de ser demasiado dramático. Na maior parte das vezes, são apenas casos que requerem relativa pressa. E a ideia de que quem se dirige ao hospital são doentes também roça o exagero. Em alguns casos não se trata bem de doenças, são cidadãos que sentem uma moinha. Mesmo a designação de “hospital” traz à memória imagens desagradáveis: compressas, agulhas, o cheiro a éter. Porque não a Estância de Santa Maria? Não existe, evidentemente, uma situação de caos em que os doentes são obrigados a esperar mais de 11 horas nas urgências do Hospital de Santa Maria. O que se passa é um cenário de grandes dificuldades em que apesar disso alguns cidadãos com uma moinha têm tido a oportunidade de serem atendidos em menos de 12 horas na zona de relativas pressas da Estância de Santa Maria.

Além do mais, o caso demonstra que, em Portugal, a realidade tem de se esforçar muito para ser considerada caótica. Connosco, a realidade não brinca. 11 horas de espera numa urgência? Não é indicação de caos. Trata-se de grande dificuldade. Quanto tempo de espera faria com que a situação merecesse a qualificação de caótica? Não sabemos. Parece-me uma clara ocorrência do paradoxo sorites. Eubulides de Mileto concordaria: se 11 horas de espera não são evidência de caos, 11 horas e um minuto também não serão. A diferença entre a grande dificuldade e o absoluto caos não pode ser de apenas um minuto. Mas se 11 horas e um minuto não são resultado de caos, 11 e dois minutos também não serão. E assim sucessivamente. É possível que, nas urgências do SNS, o caos acabe por nunca chegar. Tal como a nossa vez de sermos atendidos, curiosamente.»

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