«Todos os fins de ano nas redações - suponho que seja assim em todas - pedem aos jornalistas que nomeiem os acontecimentos e personalidades nacionais e internacionais que mais marcaram os 365 dias anteriores. Este ano havia, no plano internacional, dois acontecimentos (a meu ver) rivais em importância: a invasão da Ucrânia e a revolta feminista no Irão. Decidi pelo primeiro, sentindo-me porém a trair aquele que é um dos mais deslumbrantes movimentos de massas a que assisti em vida, de uma coragem e espírito de sacrifício - martírio é a palavra certa - inigualáveis.
É que se entra pelos olhos adentro (mesmo se há quem esteja voluntariamente cego) que os ucranianos estão a demonstrar uma coragem e uma resiliência que parecem sobre-humanas, de certa forma pode-se dizer que a isso foram obrigados pela agressão da Rússia e pela ameaça de anulação como nação e povo que esta, declaradamente, significa; pararem de lutar é aceitarem não existir. E nas lutas pela sobrevivência os povos, como as pessoas, podem descobrir forças onde nem sabiam que as tinham.
Acresce que os ucranianos estão a receber muito apoio e ajuda, não apenas em discurso mas em coisas que fazem realmente diferença - armas, dinheiro, sanções contra a Rússia. Têm parte do mundo com eles, e a pôr o dinheiro onde está a boca, como se diz em inglês.
Em contraste, quem no Irão sai à rua desarmado para enfrentar os torcionários do regime e as suas balas reais (e imaginar a coragem necessária para isso?) mais a probabilidade de detenção, tortura e condenação à morte não tem, apesar do que pretende a propaganda da teocracia, sempre obcecada com teorias de conspiração, a ajuda material de ninguém.
Ninguém arma, ninguém financia aquelas pessoas que arriscam tudo para gritar pelos direitos das mulheres e exigir liberdade e democracia. Se já foram anunciadas, pela Comissão Europeia, sanções contra o Irão especificamente relacionadas com a brutal repressão dos protestos, não é crível que tenham grande expressão e portanto efeito - até porque o país já está sob sanções, devido ao seu programa nuclear, há muito.
E na verdade, como bem escreveu Bárbara Reis no Público a 24 de dezembro (É sobre o Irão, pode ler, sff), as bravas e bravos iranianos nem sequer têm a seu favor a atenção, o interesse, a emoção e o carinho que a luta da Ucrânia vem merecendo - por exemplo a quem consome jornalismo.
Como a Bárbara, reparei que os textos de opinião que escrevo sobre o Irão movimentam muito poucos leitores - inclusive no Twitter, se o Twitter pode servir como barómetro, parecem ser dos menos comentados e partilhados. Pensei que seria por falta de capacidade da minha parte, mas perante a evidência de que foram os menos lidos de entre os que a minha camarada do Público escreveu em todo o 2022, há que admitir que nem as portuguesas nem os portugueses acham aquela luta, e a brutal repressão que ela suscita, coisa que lhes diga respeito.
Não veem ali - como pelos vistos tantos reconhecem na Ucrânia, a crer nas sondagens - uma luta fundamental por valores "seus", a defesa de uma visão do mundo e de uma forma de viver que é, como tanto se repete, a "ocidental". Não veem ali o heroísmo de quem afronta a morte para erguer o estandarte das democracias contra as tiranias.
No entanto é exatamente disso que se trata - aquelas pessoas estão a lutar apenas e só por aquilo a que costumamos, com a nossa proverbial arrogância, apelidar de "valores ocidentais": direitos das mulheres, e portanto direitos humanos; liberdade para decidir viver como querem e não como a teocracia lhes impõe; um regime laico, que resulte de eleições livres, não uma ditadura de clérigos.
E estão a fazê-lo de livre e espontânea vontade. Não havia uma ameaça direta à sua sobrevivência - podiam ficar em casa nas suas vidas como antes; podiam continuar a conformar-se com aquilo que há décadas, e no caso dos mais jovens, desde sempre, as e os deixam fazer e com aquilo que não as e os deixam fazer. Podiam calar-se. Em vez disso, resolveram tratar a repressão do regime como uma invasão estrangeira, tão ilegítima e tão visceralmente insuportável e anuladora das suas identidades como a da Rússia é para a Ucrânia.
Estão a fazê-lo há 100 dias, contando apenas uns com os outros. Estão a fazê-lo sem lideranças, sem um rosto e uma voz que como os de Zelensky simbolizem a sua coragem e resistência, e corram o mundo a exigir solidariedade. Estão a fazê-lo cercados por todos os lados, contra uma muralha de armas e terror. Estão a fazê-lo prometendo antes morrer que desistir.
Aliás o rosto desta rebelião, desta revolução, desta insurreição é o rosto de uma morta, Mahsa Amini. Não sabemos sequer se ela, que morreu detida, crê-se que por ter sido espancada pela "polícia da moral", era uma rebelde. Não sabemos se, não tivesse sido ela a morrer, sairia à rua com os que protestam. Dela só se sabe que tinha alegadamente o hijab, o lenço com que a lei obriga as mulheres no Irão a cobrir o cabelo, "mal posto". Foi esse o seu crime: mostrar demasiado cabelo. E foi pelo insuportável de isso ser um crime a merecer a violência dos esbirros do regime que as mulheres iranianas, e depois os homens iranianos, se ergueram.
Pela determinação de que não voltasse a acontecer - mesmo que, paradoxalmente, para não voltar a acontecer muito mais mansas, e os seus irmãos em luta, tenham de morrer. Se ofereçam à morte.
Como é que isto não (co)move o mundo? Como não interessa às portuguesas, aos portugueses?
A Bárbara conta os quilómetros que separam Portugal do Irão - 6500 - e o baixo número de iranianos que aqui vivem como fatores explicativos desta distância emocional e intelectual. Não sei se é por aí: quando nos EUA um negro foi morto pela polícia os portugueses solidarizaram-se e saíram à rua em protesto (e em plena pandemia) como, diga-se, nunca saíram quando negros foram brutalizados pela polícia portuguesa. Há fenómenos assim, importações de sentimentos que na verdade não sentimos.
E depois há essa verdade que como mulher sei sobre este país: os direitos das mulheres não movem Portugal. Nem os das portuguesas, quanto mais os das iranianas. Aliás, os direitos humanos em geral também nem por isso.
Nem tão-pouco a ideia de liberdade - essa ideia que levou um dos dois jovens executados pela sua participação nos protestos a, já vendado e a caminho da forca, escolher como últimas palavras "não quero que rezem na minha campa, quero que dancem e oiçam música."
Chamava-se Majidreza Rahnavard, tinha 23 anos. Glória a ele, glória aos que como ele lutam contra a teocracia que invadiu o seu país. Glória aos mártires da democracia e da liberdade, no Irão como em qualquer outro lugar.
Mulher, vida, liberdade. Sempre.»
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