6.12.22

Isto parece a gozar, mas é muito sério

 


«Estamos sempre a regressar a este tema: como se podem defender as democracias dos que as querem destruir?

Que se defendem mal, muito mal, já sabemos. Ou não estaríamos a assistir, no rescaldo das eleições brasileiras, a pedidos, nas ruas daquele país e nas redes sociais, de uma intervenção militar para impor uma ditadura. Não teríamos ouvido um deputado desconhecido, que acabaria por ser eleito (et pour cause?) presidente do Brasil, a glorificar a tortura e um torturador em pleno parlamento. Não estaríamos a ouvir um ex-presidente americano, derrotado em eleições há dois anos, a continuar a reivindicar vitória e agora até, depois de ter suscitado uma invasão do parlamento, a "anulação da Constituição". Não estaríamos a ver o atual dono do Twitter a permitir, em nome da "liberdade de expressão" e de uma ideia de "imparcialidade", o regresso de contas que tinham sido suspensas por discurso de ódio e apelo à violência.

Pela sua natureza dúctil e permissiva, que consagra a liberdade individual como valor e a livre expressão de ideias como princípio, assumindo como ponto de partida que todas as vozes e discursos valem o mesmo e merecem o mesmo respeito, a democracia às vezes parece uma terra de ninguém - um lugar onde pode vencer quem mais gritar, mais mentir e mais descer o nível.

Um lugar de contradições, no qual a lei pode dizer-nos coisas opostas. Por exemplo que é crime o discurso que discrimina grupos de pessoas em função de determinadas características, e que é proibida a existência de partidos ou movimentos políticos que defendem essa discriminação. Mas também que todos os partidos, desde que legalmente constituídos e participantes de eleições, têm direito, em campanha eleitoral, ao mesmo tipo de tratamento, com "igualdade de oportunidades", pela comunicação social e até pelas "entidades privadas".

É isso que dispõe, como nos lembra a Entidade Reguladora para Comunicação Social numa deliberação que esta segunda-feira foi noticiada, a Lei Eleitoral da Assembleia da República, no seu artigo 56.º ("Igualdade de oportunidades das candidaturas"): "Os candidatos e os partidos políticos ou coligações que os propõem têm direito a igual tratamento por parte das entidades públicas e privadas a fim de efetuarem, livremente e nas melhores condições, a sua campanha eleitoral".

Desta disposição legal retira a ERC que "a generalidade dos conteúdos transmitidos pelos órgãos de comunicação social [mesmo fora dos espaços jornalísticos, portanto] está sujeita, durante o período eleitoral, ao princípio da igualdade de oportunidades e de tratamento das diversas candidaturas".

Pelo que, perante as duas queixas que lhe chegaram protestando por, no período pré-legislativas de 2022, um programa humorístico da SIC ter incluído, no seu "especial eleições", entrevistas de todos os líderes cujos partidos estavam representados no parlamento, à exceção de um, a ERC entendeu deliberar que este canal deve ponderar bem, "de modo a respeitar os princípios que enformam a atividade dos órgãos de comunicação social durante o período eleitoral", quando escolhe convidar uns candidatos e excluir outros. E." recomenda que a SIC compense, "se necessário, na restante programação, os desequilíbrios gerados num determinado programa em matéria de igualdade de oportunidades e de tratamento das diversas candidaturas, assegurando o pluralismo político-partidário nas suas emissões.

À partida esta decisão, que por acaso enferma de um erro na apreciação dos factos - refere que o único líder de um partido com representação parlamentar a não ser convidado foi o do Chega, quando os Verdes tiveram representação parlamentar até 2022 (em coligação com o PCP) e não houve convite ao seu líder por parte do programa em causa - até pode parecer sensata. Afinal, a ERC está a pugnar pela igualdade de oportunidades para todos os partidos, no contexto de um programa televisivo de grande audiência.

Mas comecemos por ver onde levaria a aplicação dessa lógica a todos os espaços da comunicação social (para não falar de todas as entidades privadas: será que por exemplo uma banda que seja convidada para abrilhantar os comícios de um partido tem de aceitar o convite de todos os outros? Ou um privado que ceda espaço a um partido para uma ação de campanha tem de o fazer com todos os outros?). Por exemplo aos espaços de opinião, como esta coluna.

Há quem considere que a opinião, se escrita por um jornalista, é uma disciplina do jornalismo, e há até quem ache que um jornalista a dar opinião tem de manter aquilo a que se dá o nome de "imparcialidade" (o que considero total disparate). Seja qual for a opinião que se tenha sobre a opinião, porém, não haverá dúvida sobre o facto de que esta coluna faz parte de um jornal.

Ora, assim sendo, seguir a lógica da ERC implicaria que neste espaço, em tempo de campanha eleitoral, se tivesse de falar, em partes iguais e quiçá de forma semelhante, de todos os partidos - ou de nenhum. Se me ocorresse analisar o programa de um deles, ou de dois ou três, estaria obrigada a fazê-lo com todos? E se me desse para gozar com um líder partidário, não podia deixar de gozar com os outros todos?

Há bons motivos para a lei determinar o princípio da igualdade de oportunidades para os partidos em campanha eleitoral, para estabelecer a imparcialidade das entidades públicas e critérios o mais uniformes possível para a cobertura jornalística - mas deve ser evidente que em espaços de opinião (como é, claramente, um programa humorístico) não se podem nem devem querer impor regras de "isenção" e "imparcialidade". E que a ideia de "compensação" aventada pelo regulador, numa burocracia de régua e esquadro, é simplesmente idiota.

A questão fundamental, porém, vai para além dessa obviedade. Porque o que está realmente em causa na matéria que a ERC quis abordar não é a equidade de acesso ao espaço na comunicação social mas aquilo que a SIC assume na sua resposta: o critério que levou o responsável do programa em causa a não convidar o líder do Chega. A saber, "não qerer dar espaço, num programa de humor da sua autoria, à defesa de ideias que, do seu ponto de vista, atentem contra a dignidade da pessoa humana, igualdade e direitos, liberdades e garantias".

Para justificar essa opção, a SIC cita ainda o artigo 27.º da Lei da Televisão ("Limites à liberdade de programação"), número 2, alínea a: "Os serviços de comunicação social audiovisual não podem, através dos elementos de programação, incitar à violência ou ao ódio contra grupos de pessoas ou membros desses grupos em razão do sexo, raça, cor ou origem étnica ou social, características genéticas, língua, religião ou convicções, opiniões políticas ou outras, pertença a uma minoria nacional, riqueza, deficiência, idade, orientação sexual ou nacionalidade".

A ironia desta citação, dirigida à ERC, uma vez que é a esta que cabe zelar pela aplicação desta lei, não se esgota nela - afinal, foi na SIC, e num programa de informação, que o líder do Chega, em janeiro de 2021, caluniou e difamou uma família de pessoas negras e os imigrantes e habitantes de bairros sociais em geral, sem que nenhum dos presentes ou quem a seguir na antena comentou a sua prestação tivesse sequer assinalado a inadmissibilidade do que acabara de acontecer.

É, as leis que visam defender a democracia podem ser contraditórias. E defender o princípio da equidade no tratamento de partidos políticos não pode significar esquecer e trair o essencial dos valores democráticos. Não pode - não deve - haver imparcialidade face ao racismo e ao discurso do ódio. Nem em programas recreativos nem, sobretudo, no jornalismo.»

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