«A banalização das filas de ambulâncias à porta de hospitais ou de esperas de dez horas para doentes triados como urgentes, ou ainda de sempre imprevisíveis fechos de urgências pelo país, são demonstrações simultâneas da dificuldade dos picos de acesso ao sistema de saúde e da sua impreparação estrutural — o que suscita os também trivializados discursos condescendentes com promessas vazias por parte do ministério. No entanto, numa coisa o ministro tem razão: isto não é um caos surpreendente. É mesmo assim que se quer que funcione o serviço e tem de ter este desfecho, por quatro motivos que importa questionar.
O PRIMEIRO AJUSTE DE CONTAS NO PS
A substituição de Temido por Pizarro terá sido o resultado do desgaste de um período difícil, mas não pode haver dúvida de que constituiu um reconhecimento de fracasso e, finalmente, da pressão de uma parte do PS que a queria ver pelas costas. Mesmo durante a pandemia, a ministra nunca teve os meios exigíveis para travar a saída de profissionais (terminou o primeiro ano da pandemia com cerca de mil médicos a menos), para resolver o problema das várias carreiras ou para recuperar os cuidados primários. Solucionar a falta de profissionais com o convite a 500 horas extraordinárias por ano (mais de dez por semana) ou com pagamentos gordos a tarefeiros só podia ter um resultado: o descontentamento generalizado num sistema disfuncional.
Pizarro, próximo de Campos Ferreira, o ministro que fora trocado por Temido, ocupou o lugar e o seu setor do PS festejou a vitória. Começou o discurso novo: isto é só um problema de “gestão”. Em poucas semanas, tivemos a confirmação do “CEO” do SNS — o uso do termo é um monumento à ideologia — que, apesar de ainda não estar em funções, ausência que se arrasta por dois meses, já terá feito nomear uma nova administração para o Hospital de Santa Maria, num misterioso passe mágico. A gestão está ao ataque, mas as filas de ambulâncias aumentam ao primeiro escolho. Assim, a promessa é que o SNS ficará na mesma.
O SEGUNDO MANTER AS FINANÇAS NO COMANDO
Tem dito Correia de Campos, ex-ministro (declaração de interesses: temos uma relação familiar, sabendo-se das nossas visões distintas sobre o SNS), que isto de gestão é conversa: “O Ministério das Finanças não tem confiança no Ministério da Saúde e, por isso, substitui-se ao Ministério da Saúde. Quem gere a Saúde hoje, em Portugal, é o Ministério das Finanças” (TSF/“DN”, julho). E explicou como: há um orçamento, mas os hospitais recebem 70% e o resto fica adiado, pode ou não vir a ser entregue no final do ano, o que lhes impõe uma gestão turbulenta e medrosa. Não é cativação, é truque. Acrescente-se que as Finanças têm o poder de atrasar ou recusar a contratação de cada técnico em cada unidade de saúde, no óbvio desconhecimento sobre o seu funcionamento. Um cordato ministro da Saúde é o que justifica este poder das Finanças, Pizarro não tem feito outra coisa: é a gestão que manda, mesmo quando não é gestão e, tirando o coelho da cartola, cria-se o “CEO”, encavalitado na administração central e nas administrações regionais.
O TERCEIRO MULTIPLICAR ESTRUTURAS SEM DINHEIRO
Vai tudo correr bem, é um bom orçamento, diz então o ministro. Ora, parece que não. Diz ainda Correia de Campos (desta vez à Antena 1, no mês passado) que o orçamento é insuficiente. Basta fazer as contas, para repetir o velho chavão: o aumento de 2,7% para a Saúde para 2023 não acompanha “nem a inflação, nem a manutenção do equipamento, nem o reforço salarial necessário”. Falha tudo. O orçamento real é mais pequeno, quando os custos da saúde sobem sempre. Acumula-se a necessidade de reparação ou substituição de equipamentos, depois de anos de subinvestimento. E há o problema salarial, lembra o ex-ministro que “existe um desconforto e uma situação de sub-retribuição” e “o desempenho não pode continuar a ser pago com horas extraordinárias”, o que é a forma delicada de colocar a questão. As carreiras médicas e de outros profissionais da saúde tornaram-se um enterro e, na falta de pessoal, o fecho de urgências já deixou de ser um acontecimento anormal.
O QUARTO NÃO INCOMODAR O PRIVADO
O resultado não deixa dúvidas: ao longo deste ano e desde o concurso que permitiu a entrada em janeiro no internato médico, já saíram do SNS 1229 médicos (dados de outubro), alguns por aposentação, muitos para unidades privadas. Entretanto, a promessa de médico de família para todas as pessoas foi naufragando sem remédio, poucas pessoas querem sacrificar-se nesta especialidade, dificuldade agravada para quem vem de fora de Lisboa pelo custo impossível do aluguer de uma casa — e um milhão de pessoas está sem médico de família só na zona da capital.
O desânimo criado por anos a fio desta mascarada dos “tarefeiros” e o fosso geracional entre os jovens internos e os especialistas que sustentam as elevadas competências técnicas do SNS não podem ser resolvidos por truques de gestão, ou pela ideia peregrina do ministro de pagar centros de saúde privados, mas somente por uma estrutura profissional confiante. Ora, como dizia Costa num debate eleitoral e pouca gente deu conta disso, “o que queriam é que eu fizesse concorrência aos privados”, isso nunca, carreira em exclusividade, a velha ideia de Arnaut, não passará. Haverá um CEO, urgências fechadas e o PS continuará a desmantelar o SNS com juras de fidelidade e boa “gestão”.»
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