15.12.22

O subproletariado português



 

«“Tens amigos que estão em França há anos que ainda não têm documentos. Falas disso amiúde. Tens medo que eles sejam detidos ou deportados. Sabes que, para eles, a fronteira está por todo o lado, que pode surgir do nada.”

Estas palavras são do filme Nós Viemos, do cineasta de origem portuguesa José Vieira, que põe lado a lado imagens e relatos da diáspora portuguesa a caminho de França nos anos 1960 e de migrantes africanos que atravessam o mar Mediterrâneo nos dias que correm. Imigrantes subsaarianos a adaptarem-se às dificuldades das barreiras burocráticas e laborais seguidos de portugueses a serem resgatados por barcos de pesca no rio Bidassoa, que separa Espanha de França. As semelhanças são aterradoras.

A fronteira está por todo o lado. De facto, as fronteiras modernas não são linhas num mapa. Não são muros nem redes com arame farpado. São sistemas complexos dos quais apenas uma parte se materializa em vedações, e que se estendem bem para dentro dos territórios dos países. Um imigrante que tenha atravessado a fronteira irregularmente, ou cujo visto tenha caducado, não se vê livre das fronteiras só porque ultrapassou a linha que divide dois países. Está ainda sujeito à possibilidade constante de detenção e deportação, bem como a todo um sistema legal e burocrático que lhe retira os direitos há muito conquistados pelos trabalhadores do país de acolhimento.

Os atrasos do SEF

Em Portugal, o caminho mais utilizado para procurar a obtenção de uma autorização de residência é o artigo 88.º da Lei nº 23/2007, que regula a “Entrada, Permanência, Saída e Afastamento de Estrangeiros do Território Nacional”. Este mecanismo permite que uma pessoa se candidate à regularização desde que, entre outras condições, tenha um contrato de trabalho.

Muitos estrangeiros encontram aqui uma forma viável de regularizar a sua situação neste país. No entanto, a inexistência de alternativas que não envolvam trabalhar sem cidadania por períodos longos gera situações terríveis em que imigrantes, desesperados por um contrato, são pressionados a aceitar quaisquer condições por parte dos seus empregadores, apenas para conseguirem ter os papéis certos para aceder ao 88.º.

De facto, nos últimos anos tem vindo a público um número impressionante de casos de migrantes empregados na agricultura, em várias partes do país, em condições extremamente precárias, trabalhando um número de horas que excede largamente o horário laboral, e às vezes mesmo sem remuneração. Na melhor das hipóteses, este sistema fomenta a exploração de pessoas já particularmente vulneráveis. Na pior, incentiva a escravatura.

Há, neste momento, mais de 200 mil pessoas à espera que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) avalie os seus pedidos e tornou-se regra, em vez de excepção, que o SEF exceda largamente o período legal de 90 dias para comunicar ao candidato uma decisão final. E isto não é um fenómeno recente. Em Agosto do ano passado, o Diário de Notícias reportava que o SEF estava, nesse momento, a avaliar pedidos com quatro anos.

São centenas de milhares de pessoas neste país a quem o Estado Português falhou.

O fardo dos imigrantes


Os estrangeiros em Portugal que não têm a sua situação regularizada vêem-se aprisionados neste limbo legal enquanto esperam pelos atrasos indeterminados e ilegais do SEF. Durante esse período, não possuem documentos oficiais, e isso dificulta significativamente o seu acesso a saúde, educação, habitação e até à possibilidade de reunificação familiar. Tudo isto com o espectro sempre presente da possibilidade, por estarem em situação irregular, de serem detidos nos infames centros de instalação temporária, num dos quais se deu o assassinato brutal do cidadão ucraniano Ihor Homeniuk, em 2020, às mãos de inspectores do SEF. Estes espaços têm sido alvo de constantes críticas por parte do Mecanismo de Prevenção Contra a Tortura ao longo dos anos, bem como de inúmeras queixas de ex-detidos que incluem espancamentos, obstruções à representação legal e outras ilegalidades.

Além disso, até que consigam obter autorização de residência, a mobilidade destas pessoas está condicionada porque não lhes são dadas quaisquer garantias de que, se saírem do país, consigam tornar a entrar legalmente até que o processo esteja concluído. O resultado é que passam anos a viver e trabalhar em Portugal sem conseguirem ver os familiares e amigos que deixaram para trás.

Trancar as pessoas nesta prisão de incerteza e insegurança representa também um peso enorme para a sua saúde mental. Passar anos num país estrangeiro, com todas as dificuldades intrínsecas que isso acarreta, forçosamente afastado da família, com acesso condicionado aos direitos mais básicos, é solo fértil para ansiedade e depressão, que dificultam ainda mais a posição de extrema vulnerabilidade em que estes imigrantes já se encontram.

São centenas de milhares de pessoas que trabalham, pagam impostos e contribuem para a Segurança Social durante anos até poderem usufruir dos direitos que o seu próprio trabalho financia. Só no ano passado, a Segurança Social cobrou mais de mil milhões de euros em contribuições a estrangeiros que dela apenas beneficiaram numa pequena fracção. São uma espécie de subproletariado condenado a trabalhar nas condições mais desumanas e desprovido dos direitos laborais há muito conquistados em Portugal.

São centenas de milhares de pessoas neste país a quem o Estado português falhou.

É urgente mudar este sistema

Contra a violência que recai todos os dias sobre os imigrantes em Portugal, dezenas de colectivos e associações da sociedade civil portuguesa juntaram-se para organizar uma manifestação na próxima sexta-feira, dia 16 de Dezembro, no Largo de Camões, em Lisboa, às 18h.

Enquanto não conseguirmos pensar um sistema mais justo, continuaremos a aceitar a discriminação e a exploração daqueles que não procuram mais do que uma vida melhor. É necessário criar um modo de acolhimento que garanta igual tratamento, independentemente do passaporte.

Migrar não é um crime, e há que parar de tratar imigrantes como criminosos. Há que acabar com a detenção administrativa de migrantes. Há que criar condições para uma regularização célere e para o acesso à saúde, educação e outros serviços básicos. Há muito por fazer no caminho para a igualdade de direitos e muito do que temos pela frente vai requerer um debate público sério. Mas não há dúvida de que o primeiro passo é acabar de vez com os atrasos ilegais e desumanos do SEF, que aprisionam as pessoas neste ciclo de insegurança, ansiedade e precariedade. E, dada a iminente extinção desta força policial, nunca houve melhor oportunidade para o fazer.

José Vieira começou este texto e deixo-o também finalizá-lo:

“Em poucos anos, esta Europa onde estas crianças não são bem-vindas tornar-se-á a sua casa. A elas faço a mesma pergunta que às crianças da mão-de-obra estrangeira dos anos 60. Como podemos sentir-nos verdadeiramente daqui após termos cruzado tantas fronteiras?”»

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