«Trata-se de um fenómeno quase impossível e quando acontece é momentâneo. Adolescente, observei essa quase impossibilidade quando, à porta da cozinha da casa dos meus pais (agricultores), olhava em simultâneo a eira e o eido, num dia de mais sol que chuva e com nuvens esparsas. Por uns instantes, a chuva caía no nabal e o sol beijava a eira. Foram apenas uns curtos segundos.
Aquele ditado popular veio-me à memória no início desta semana, quando o Gabinete de Estatísticas da União Europeia disponibilizou dados que colocam Portugal em 17.º lugar no ranking dos salários brutos médios anuais de quem trabalha a tempo inteiro. Este estudo refere-se a dados de 2021 e considera 26 dos 27 países que integram a União. Os nossos 19 300 euros anuais ficam a mais de 52 000 do salário mais alto, o do Luxemburgo (72 200 euros). A nossa posição dista mais da média europeia (30 000), que do salário mais baixo, o da Bulgária (10 300).
Com as políticas económica, laboral e social que vão sendo seguidas, podemos melhorar qualquer coisita conjunturalmente, mas continuaremos a disputar o campeonato dos últimos. Além disso, os nossos salários são muito baixos para o custo de vida que temos: encargos com a habitação influenciados por dinâmicas especulativas e por oportunidades de explorar turistas, bens de primeira necessidade a preços de países ricos, mobilidades limitadas. Ao mesmo tempo, alguns dos nossos direitos sociais fundamentais estão a minguar.
Existem condicionalismos externos, todavia, o fundamental das causas que transformam a vida de milhões de portugueses num pesadelo situa-se nas contradições profundas entre o que o Governo e outras instituições do poder anunciam como objetivos e as políticas que adotam. Os valores de referência para atualização dos salários, inscritos no último Acordo de Concertação Social, e os que o Governo adota para a Administração Pública são, sem dúvida, travão e não alavanca do crescimento dos salários. Se os trabalhadores com as suas lutas não conseguirem objetivos superiores, a 31 de dezembro de 2023 os salários reais dos portugueses, nos setores público e privado, serão piores que os de hoje.
Se analisarmos com cuidado as causas da emigração dos nossos jovens e, por outro lado, as características e condições dos imigrantes que estão ou passam pelo país (ver recente Relatório do Observatório das Migrações), vemos a política de baixos salários como motor dos dois movimentos. É um problema cada vez mais estrutural que condicionará no pior sentido a resolução da sensível questão demográfica.
Para os salários praticados em Portugal crescerem é preciso industrialização, mobilização das empresas para tratarem do seu posicionamento nas cadeias de produção e distribuição, uma política salarial e laboral que não favoreça o aumento de atividades de baixo valor acrescentado.
Na área do trabalho, o Governo entretém-se com temas pontuais transformados em floreados. Pouco faz para valorizar o trabalho de centenas de milhares de trabalhadores que desenvolvem atividades fundamentais para o funcionamento da sociedade, mas são consideradas pouco qualificadas. Desconsidera as organizações sindicais e incentiva o marasmo na contratação coletiva, o instrumento fundamental para elevar os salários de todos os trabalhadores.
É absoluta a incompatibilidade entre a desvalorização do trabalho e uma demografia pujante, associada a uma população ativa jovem e qualificada.»
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