28.1.23

Este altar-mor é uma pira

 


«A polémica com os custos da Jornada Mundial da Juventude – nomeadamente o do seu altar-mor – é uma ode à incapacidade de planear, como aqui escreveu já Andreia Sanches, e simboliza no seu esplendor o distanciamento (irreconhecimento) que existe entre as elites política e clerical e o povo, o que vai totalmente contra a mensagem principal do pontificado do Papa Francisco.

Nesta absoluta falta de empatia (para lembrar o que disse Jacinda Arden, a ex-primeira-ministra da Nova Zelândia, no momento da despedida) o papel da Igreja foi determinante e as declarações do bispo Américo Aguiar de que se tinha "magoado" a ouvir o preço total são bastante insuficientes – ou pelo menos revelam uma caridade em causa própria que, enfim, às vezes dá jeito.

O país acordou agora para uma coisa que está em preparação desde 2019? Parece que sim, até porque ninguém sabia de nada e o não saber de nada, já se sabe, é um karma dos responsáveis políticos, religiosos e afins nacionais. Mais ou menos ignorando os custos totais, todos eles pensaram que tudo se resolvia através de uma espécie de laissez faire, laissez passer. A "mágoa" do bispo auxiliar de Lisboa veio tarde e a más horas, como aqui escreveu a Helena Pereira.

Carlos Moedas diz que, apesar de ser só presidente da câmara há pouco mais de um ano, vai "dar o corpo às balas". Insiste que o palco da discórdia deve dar jeito para a Web Summit, para a requalificação de uma zona de Lisboa e que a câmara se limitou a seguir o guião da Igreja. Valha-nos Deus. Moedas tem razão numa coisa: falta muito pouco tempo para a Jornada Mundial da Juventude e todo este debate devia ter sido feito antes.

E não foi porquê? Porque ninguém quis saber. A sério, toda a gente embarcou na treta do "retorno", uma conversa insuportável que tem justificado gastos incomportáveis do erário público. Assim como a realização do Euro 2004 em Portugal resultou na construção de estádios inúteis, verdadeiros elefantes brancos, porque iria haver muito retorno, a Jornada Mundial da Juventude está desde já manchada pelo mesmo problema.

Num momento de crise económica, uma crise que afecta sobretudo os mais jovens e aqueles que têm profissões essenciais à vida da comunidade – professores, médicos, polícias –, o gasto em obras faraónicas deste género é inaceitável e incompreensível.

E é de bradar aos céus (o Estado é laico, a língua não) que os responsáveis políticos e da Igreja, que se manteve em silêncio até quinta-feira, não consigam perceber por que gastar um valor destes em tempos de crise, de inflação e de tempos duros para os mais frágeis e classe média é incompreensível. Basicamente, repete-se aqui o que se passou com o Governo no caso da indemnização da ex-secretária de Estado do Tesouro enquanto gestora da TAP. Ninguém percebeu que, para o cidadão comum, estas coisas não são normais.

A ideia de que "as contas certas" só existem e são propagandeadas quando se trata de justificar porque não se pode aumentar os salários dos pobres e da classe média – e para o resto, a questão resolve-se sempre – está a fracturar indelevelmente o tecido social. A manifestação marcada para este sábado pelo sindicato dos professores STOP – entretanto alargada a outras profissões e basicamente "a toda a gente" – pode ser um barómetro.

Foi interessante ver a evolução do pensamento do Presidente da República esta semana. Provou-se novamente que Marcelo consegue ler os sinais do povo antes dos outros, o que o levou a rodopiar em torno dos custos da Jornada. Primeiro, questionou; depois, aceitou as explicações de Carlos Moedas de que o recinto do altar (agora convertido em pira) servia para outras coisas, como para a Web Summit; finalmente, percebendo que o cidadão comum não estava a gostar da brincadeira, voltou a subir a voz sobre os custos e pediu explicações. Pelo meio, um atrito com a Igreja: um porta-voz da Conferência Episcopal veio dizer à comunicação social que Marcelo sabia dos custos desde o início. A verdade é que o bispo Américo Aguiar acabou a confirmar que Marcelo não sabia.

O clima de irresponsabilidade não é um exclusivo do Governo. Quando as instituições de um país se estão nas tintas para "o ar dos tempos" abrem as comportas a todos os populismos. E a culpa não é da comunicação social, como alguns gostam de dizer.»

Ana Sá Lopes 
Newsletter do Público, 27.01.2023
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