16.2.23

A cópia de Ventura e as muitas Odemiras do país

 


«“A cópia perde sempre com o original”. Assim comentou Marcelo a reação de Luís Montenegro à tragédia da morte de dois migrantes em Lisboa. O líder do PSD tinha pedido “um programa transversal” para “procurar pelo mundo” “quem precisamos em Portugal, quem queremos em Portugal”. A declaração de Montenegro é lamentável, no conteúdo e no tempo. Não se trata apenas do que sugere sobre a migração (no fundo, como defende a extrema-direita, a ideia de que o Estado deve pré-escolher quem vem para Portugal, como se tal operação fosse aceitável ou sequer possível). Trata-se também de ter ignorado a tragédia e aproveitado o dia para lançar uma suspeita e um estigma. Marcelo tem razão no corretivo.

A desgraça do incêndio na Mouraria não é problema de migrações, nem fruto de desconhecimento da realidade. O sucedido é subproduto da sobrelotação e da ausência de condições de habitação digna. É mais uma expressão desse problema que não tem tido resposta, nem programas capazes de assegurar o elementar direito humano a um teto. Para as pessoas migrantes, é tudo mais difícil: obstáculos à regularização, trabalho informal, rendimentos ainda mais baixos, impedimentos na celebração de contratos de arrendamento, impossibilidade de se candidatarem a programas de habitação municipal se não residirem oficialmente na cidade há pelo menos dois anos. Tudo circunstâncias que empurram milhares para a escolha entre a sobrelotação ou viver na rua.

Os imigrantes são parte indispensável deste país. Em 2022 contribuíram com 1500 milhões de euros para a Segurança Social, mas continuam a ser carne para o canhão de quem explora o seu trabalho, de quem aluga quartos degradantes por uma fortuna, de agressões racistas como as de Olhão ou de crimes de ódio como o cometido por agentes da polícia contra Cláudia Simões.

Em Portugal, sem o trabalho dos imigrantes, alguns dos setores que mais cresceram nos últimos anos, da restauração ao alojamento turístico, da construção civil à agricultura intensiva, paravam imediatamente. Mas a mesma economia para a qual eles e elas são indispensáveis foi a que construiu um “modelo de negócio” agrícola-intensivo assente na neoescravatura, em que empresas angariadoras se aproveitam da fragilidade da condição clandestina dos trabalhadores e em que se fecha os olhos quer à ausência de infraestruturas no campo, quer à inexistência de habitação nas cidades, onde o trabalho dos imigrantes é afinal imprescindível para o “funcionamento do mercado”. O que aconteceu em Lisboa, com 14 feridos e a morte de duas pessoas na sequência do incêndio num rés-do-chão onde moravam 22, é uma tragédia sintomática das muitas odemiras que existem no país.

Perante isto, Montenegro e Moedas apressaram-se a falar de “fiscalização e planeamento” da imigração, para fugirem de dizer o que pensam. Não só sobre direitos humanos, mas também de rendas sem controlo, dos vistos gold que transformam a habitação numa mercadoria para a especulação de milionários, da retirada de milhares de casas da sua função social de habitação, da ausência de habitação pública à medida das necessidades, de quem lucra com estas dificuldades, de quem as promove. Da imigração, Montenegro e Moedas querem o trabalho, claro, e o pretexto político para nos dividirem enquanto habitantes do mesmo país. A direita radicaliza-se.»

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