18.2.23

A Igreja, o Demónio e o dr. Freud

 


«A Igreja e os que a desculpam ganham nestes dias o campeonato da hipocrisia em relação à pedofilia. O artigo do PÚBLICO de Susana Peralta mostra e bem que não há nesta matéria qualquer elogio a fazer-lhe, nem ontem, nem hoje. Bem pelo contrário, com Comissão ou sem ela, foi forçada a revelar o que sempre quis e quer esconder. A Igreja Católica Apostólica Romana continua enredada numa moral sexual, na qual se inclui a questão contra naturam do celibato, assim como a menorização das mulheres, que não tem legitimação em qualquer dogma de fé, nem sempre existiu, e é tão histórica como a sua sistemática violação século após século.

Há, no entanto, muito mais hipocrisia para além da que emana da poderosa instituição da Igreja, um verdadeiro poder fáctico, onde a invisibilidade da pedofilia e dos abusos sexuais – convém fazer a distinção – contava com uma rede de cumplicidades de dentro e de fora. Ou seja, a Igreja não foi apenas cúmplice no seu interior, mas contou com uma sociedade à sua volta, nas cidades, nos campos, entre os católicos praticantes e os não-praticantes, entre os incréus, porque um número tão elevado de abusos não podia existir sem muita gente saber e calar.

Aliás, isto não espanta quem conheça a história e saiba que a história destes abusos e a sua forte condenação nos dias de hoje nem sempre foi assim. Como acontece com muito crimes que hoje consideramos hediondos, eles eram razoavelmente consentidos num passado muito próximo. Em grande parte por contiguidade com o local privilegiado da família, que era e continua a ser o terreno mais fértil para todo o tipo de abusos e de crimes. A família só é idílica na literatura cor-de-rosa e no discurso político dos reaccionários, fora disso é um sítio propício a todas as violências, desde a violência doméstica ao bullying e à pedofilia. E, acima de tudo, coberto pelo silêncio de que “entre marido e mulher não metas a colher”, nem entre pai e filha, nem entre tio e sobrinho, etc... E embora seja um regra com muitas excepções, onde há muita miséria, onde se vive amontoado, onde se agride muito porque há pobreza, onde há uma vida de todas as misérias, onde nada se tem, pode-se “servir” de quem está à mão.

Isto explica porque, lá por se passarem numa sacristia ou num seminário, estes crimes não eram vistos assim como tão “violentos” e reprováveis. Era como a mancebia dos padres, ou as suas diligentes “sobrinhas” e “afilhadas”. Milhares de páginas da literatura portuguesa falam de forma séria ou jocosa da distância entre a imposição do celibato e a realidade da sua violação. Os republicanos no seu anticlericalismo não deixaram de tratar os padres, em particular os jesuítas, como uma associação de criminosos, e denúncias de abusos sexuais faziam parte das acusações ao comportamento do clero.

É certo que a pedofilia — e insisto de novo: em muitos casos é abusivo falar de pedofilia, devendo antes falar-se de abusos sexuais de menores, que podem incluir a violação — era pouco nomeada e apenas sugerida. Mas a relação de poder entre os padres e freiras em relação aos seus discípulos/as era uma questão que estava bem presente no anticlericalismo republicano, e só foi mitigada nos anos do Estado Novo porque a Censura cortava todas as notícias que sugeriam um comportamento abusivo dos padres. Ou seja, isto não é novo.

Fechava-se os olhos e fecha-se os olhos. Espantam-se com o presente do verbo? Não se espantem. A invisibilidade da pedofilia nos espectáculos, nas artes, na literatura é bastante, mesmo em sectores que vivem da exposição pública e onde é gritante o que se passa. E ninguém se incomoda. O que é que pensam que Gide ia fazer a Marrocos? E nós também temos os nossos Gides, tão explícitos e tão públicos, naquilo que antigamente se chamava pederastia, uma palavra que se tornou maldita pela associação entre a pedofilia e a homossexualidade masculina.

Um caso que várias vezes referi, espantando-me por não provocar qualquer réstia de indignação, é o de um artista de variedades que viveu durante algum tempo às claras, com publicidade, com uma criança, seu “afilhado”, que de uma certa maneira “comprou” aos pais seus empregados. Várias revistas do jetset mostravam a criança, na piscina, em restaurantes, com um padrão comum a outros casos: homem poderoso e com fama e dinheiro que vive numa relação pelo menos ambígua com uma criança filha de uma governante ou de um jardineiro.

Somos todos culpados? Não, não somos todos culpados. Por isso, a crítica à Igreja Católica não pode ficar-se apenas pela condenação genérica, implica discutirem-se as causas dessa atracção pela pedofilia e, em muitos mais casos, pelo abuso sexual de menores, e perceber que as raízes do silêncio face ao comportamento de muitos padres estão tão dentro como fora da Igreja.

Por ambígua que seja a ideia da “miséria sexual”, que não explica a questão bem mais complexa daquilo a que chamamos perversões, onde ela existe o caminho para os abusos está aberto. A Igreja tem todo o direito de pedir aos seus padres a obrigação do celibato, mas deve estar consciente, e estou certo de que está, das “tentações” do mundo. O Demónio e o Dr. Freud sabiam muito bem disso.»

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