«A primeira nota que gostaria de deixar, não me traz muitos amigos, mas ouvir repetidamente “não há portugueses entre as vítimas” é uma frase que me repugna. Temos de cultivar e alimentar os princípios mais basilares dos direitos humanos: todas as vidas são iguais. Em primeiro lugar somos seres humanos, cidadãos de um mundo cujas fronteiras são meras organizações administrativas, e só depois é que somos portugueses, não por orgulho, mas por obra do acaso.
Estamos a falar de um cenário de catástrofe humanitária causado pela natureza, que já nos aconteceu, que pode voltar a acontecer-nos e que gostaríamos que os outros países não “salientassem” a não-morte dos seus cidadãos, se tivéssemos milhares de mortos e feridos portugueses a sofrer.
Há duas realidades muito distintas, a da Turquia que tem serviços de saúde e de resgate de “1.º mundo”; e a da Síria cuja população vive em condições miseráveis e que se divide (infelizmente) também em duas realidades muito desniveladas dentro da miséria comum. As zonas controladas pelo governo, e o enclave da região de Idlib controlado por forças da oposição ao regime, que são 4,5 milhões de pessoas, das quais 90% precisa de ajuda humanitária para sobreviver, e que é vítima de bombardeamentos do regime de Bashar Al Assad, com o apoio tácito da Rússia, do Irão e do Hezbollah.
A maioria das pessoas que decide não ser cobarde e olha de frente esta triste realidade que entra pelo nosso coração adentro, quer ajudar, mas não sabe ajudar, e eu, mal ou bem, tenho muitas reflexões maturadas sobre este tema, que espero que vos sejam úteis, para hoje, amanhã e sempre.
1. Empatia é o que nos permite sentir a dor do outro, e compaixão é o ímpeto para a acção de ajudar. São as pedras basilares da humanidade. Sentir e fazer.
2. Sem querer ser ofensivo: pensamentos, energia e orações só ajuda o próprio, nada chega a quem precisa. Isso é inacção.
3. Donativos. A frieza do dinheiro é difícil de ultrapassar. Eu compreendo que as pessoas se sintam melhor a comprar e enviar medicamentos, seringas e compressas, e esse ímpeto é o mais bonito do ser humano, mas não faz qualquer sentido e é totalmente ineficaz. Transformem essa vontade em donativos.
- As organizações têm material pré-preparado para este tipo de catástrofes. Precisam é de o reforçar rapidamente.
- A logística de quem sabe o que faz é essencial. Transporte, desafios alfandegários, escolher quem precisa, tudo isso tem de ser coordenado.
- É mais barato comprar localmente do que o envio em si.
- A resposta às necessidades específicas é meticulosamente estudada.
4. Organizações não governamentais (ONGs) e outros profissionais. A palavra “voluntariado” é muito bonita e foi assim que nasceu o humanitarismo, mas este tipo de desafios precisa de profissionais humanitários. A boa vontade não chega. A experiência, as reflexões maturadas de décadas e o saber trabalhar em equipa, quer médica, quer logística, são a chave da solução. Na minha opinião as organizações mais bem preparadas são os Médicos Sem Fronteiras, o Comité Internacional da Cruz Vermelha, e os militares. Se quiserem dar um apoio local recomendo os White Helmets da Síria, que é o povo que mais sofre neste momento.
5. Voluntários? Eu não digo que não possam ser úteis, mas tentem integrar equipas já estruturadas e que não estão a fazer isto pela primeira vez.
6. Desconfiança. Não sei porquê, mas em Portugal há uma enorme desconfiança nas organizações e como tal refreiam-se os donativos. Compreendam que as organizações podem cometer erros, como qualquer sistema têm falhas, mas são auditadas interna e externamente e fazem análises permanentes sobre a melhor forma de ajudar. Não alimentem esta desconfiança, pelo amor das vidas que ainda podem ser salvas.
7. Oportunidade de ser, humano. Da forma mais cruel que podíamos imaginar estas catástrofes permitem-nos, por exemplo, olhar para a Síria e para o sofrimento do seu povo dos dois lados do conflito, após 12 anos de uma guerra civil que atirou milhões para a miséria humana, e por arrasto percebemos que o nosso humanismo de nos levar para todas as zonas do planeta, por exemplo, o corno de África que passa por uma fome devastadora.
8. Cuidados médicos. É muito complexo, mas eu resumiria em:
- Organização e coordenação entre equipas e países.
- Politraumatizados cujo maior desafio são as hemorragias, com a agravante que hipotermia mata muito rapidamente quem está a sangrar.
- Triagem. Fazer o máximo pelo maior número de pessoas. Saber quem deixar morrer, e quem pode esperar por cuidados cirúrgicos 24 a 48 horas, para rapidamente identificar as vítimas cujas hemorragias têm de ser estancadas nas primeiras horas e com suporte transfusional.
- Descompensação de doenças crónicas. As outras doenças não esperam e agravam quando se vive em tendas com temperaturas negativas.
- Grávidas. Principalmente as que precisam de cesarianas, porque “competem” com os feridos que precisam de cirurgias urgentes.
9. Infraestruturas. As vidas que estão em risco não se resumem aos mortos e aos feridos do imediato. A destruição do sistema eléctrico, de água e saneamento, de estradas, e de tudo mais que faz um país funcionar a curto/médio prazo, se não forem reparados por obras de grande porte, causam muito mais mortes do que aqueles que estão nos escombros.
Os portugueses gostam de proclamar que são um povo muito solidário. Isso não é verdade. Eu não digo que não tenhamos bom coração, nem acho que faça sentido comparar bondade entre países. A verdade é que os números dizem que podíamos fazer muito mais pela humanidade. O Good Country Index, que analisa criteriosamente o que cada país faz pela humanidade coloca-nos em 29.º lugar, atrás de muitos países europeus.
Querer ajudar é muito diferente de saber ajudar, e lamentando profundamente as mortes, e os feridos do povo turco, e sírio, espero que esta ferida aberta da humanidade seja uma dor que se transforma em aprendizagem de como ajudar de forma mais eficaz, e alargar esse pensamento a toda a humanidade.
Sentir e fazer.»
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