«Uma dor imensa foi tornada pública nesta manhã de segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023. A dor dos menores, vítimas de abusos sexuais por parte de clérigos e outros homens e mulheres de Igreja. O grito de mais cinco centenas de vítimas foi escutado e validado pela Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica. A sós na solidão do seu sofrimento estarão ainda outras 4300 vítimas retraídas, mudas, caladas.
Nos cafés, nos carros e em alguns locais de trabalho a notícia foi recebida num constrangido silêncio, sem comentários: estupefação, raiva, incredulidade… Resta saber como terá sido recebido pelas comunidades católicas por esse país fora. Certo é que um vómito profundo nasce das entranhas da sociedade portuguesa — que é isto?
Suponho que para algumas vítimas — e são elas que nos interessam! — este é um momento de desagravo, conforto e reconhecimento pela coragem de denunciar as situações que as traumatizaram para sempre. Para outras será o reabrir de feridas com que não conseguem viver. Desejo, temendo que assim não seja, que para o maior número possível delas esta manhã tenha tido um carácter redentor.
As chocantes revelações de hoje têm várias consequências para a Igreja Católica em Portugal e para a sociedade portuguesa. Ao tornar-se a primeira instituição do país a deixar-se escrutinar sobre esta matéria por uma comissão independente, a Igreja Católica recuperou parte da credibilidade perdida. Mas não reconquistou a confiança das pessoas, das famílias, da sociedade. Vão ser precisos muitos anos e muitas alterações radicais no modo de ser e estar da Igreja para que a confiança seja a conotação essencial da relação dos portugueses com ela. Depois do que ficámos hoje a conhecer, três exigências centrais recaem sobre a Igreja Católica em Portugal.
Erradicar o clericalismo — essa doença danosa que subverte o espírito da comunidade cristã — será por certo uma das mais urgentes (e difíceis) tarefas. Só assim será possível controlar o poder, os poderes excessivos, absolutos, que teimam em afirmar-se acima e fora do controlo do comum dos cristãos. Esta é a origem primacial dos abusos. Dos abusos sexuais, dos escândalos financeiros, da manipulação das consciências, da reprodução de subserviências, da impunidade e do encobrimento. Tudo isto só é possível, com a extensão que vamos conhecendo, pela permanência de uma prática e de conceitos clericalistas que minam toda a tentativa de construir comunidades adultas e de respeitar a identidade, a autonomia e a alteridade do outro.
Cultivar a transparência é o reverso que tem de acompanhar a erradicação do clericalismo. Transparência que, como agora mostra o trabalho da Comissão, não é apenas “para dentro”, nem apenas a que legalmente obriga a Igreja Católica em Portugal. Transparência, sinceridade e proatividade na resposta às perguntas dos jornalistas, das pessoas, do público. Transparência sobre o que não será sequer perguntado, mas se reconhece ser importante dar a conhecer. Transparência como gosto e disponibilidade permanente para prestar contas para além do que é obrigatório, apenas e só porque essa é a condição das comunidades que se reúnem em nome de Jesus Cristo. E, se isto por si só não bastasse, porque a transparência é uma missão cívica a oferecer a um país em que ela é denegada a todos os níveis: administração pública, empresas, coletividades, instituições sociais ou beneméritas.
A terceira exigência prende-se com o apoio às vítimas. Com a sua indemnização, seguramente. Mas com ela e para além dela com o apoio a que tenham voz. O que mais nos falta, enquanto sociedade e enquanto Igreja, para que a memória destes crimes não se apague, é sabermos das pessoas concretas que foram abusadas. Só a sua voz e a sua presença tornam presente a densidade concreta, humana, real do mal a que foram sujeitas. Por muito que lhes custe, essa é uma dimensão necessária para que os abusos não acabem remetidos à frieza dos números sempre perdendo significado à medida que o tempo passa.
A Igreja precisa de encontrar formas de impedir que isso aconteça, acolhendo as vítimas, oferecendo-lhes meios de reconstrução psicológica, permitindo-lhes caminhos de recuperação da confiança em si mesmo e procurando com elas modos de lhe dar protagonismo público. Só assim não esqueceremos esta tragédia.
Esta manhã, na desgraça revelada que veio ter connosco, veio também um desafio importante para toda a sociedade portuguesa: é necessário criar uma comissão que faça um levantamento sobre abusos sexuais a nível nacional, fora da Igreja. É inadiável. E é urgente.»
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