7.5.23

A outra geringonça

 


«Afinal, a real geringonça sempre foi Costa-Marcelo, uma espécie de sistema sofisticado de gestão do poder que, durante seis anos, habitava os mecanismos internos dessa "máquina maljeitosa, que ameaça desconjuntar-se" como diz o dicionário, mas que garantiu uma estabilidade improvável. Onde Costa não podia, Marcelo ia pelos bastidores, palavrinha aqui e acolá, desbloqueando, tornando possível, fazendo surgir as contrapressões onde era necessário para mitigar a força do PCP e do Bloco, e apertando-os até para não chumbarem Orçamentos. Um sucesso.

Como sabemos, o Bloco e o PCP desistiram de ir no reboque dessa engenhoca de direção desalinhada, sempre a pender mais para a direita, na qual António Costa tinha as costas respaldadas pelo guarda-chuva de Belém. Desde logo, por interesse também de Marcelo. Na verdade, o Presidente da República tem um ideário pessoal muito claro desde sempre: é de direita. E calhou-lhe em sorte a novidade PCP-Bloco na esfera do poder. O que fez o Presidente? Atenuou, mitigou, recusou até medidas -- em nome do centro. Equilibrou, exceto em questões mais ideológicas como a da legislação sobre a morte medicamente assistida, em que empatou a decisão durante seis anos para dar um sinal ao seu eleitorado conservador. Estou aqui, vigilante. E assim se reelegeu. Monarca útil.

Com a maioria absoluta, o cenário mudou. O Presidente abandonou a geringonça e conduz agora, em viatura própria, o seu ímpeto contra o poder absoluto do PS. Os apelos ao regresso de Pedro Passos Coelho, via televisões -- mas interpelando até publicamente o próprio -- iniciaram o fim do seu papel de moderador do sistema. É aquilo que sempre se teme: Marcelo a boicotar o Presidente. Passou também a anunciar diariamente os piores defeitos do primeiro-ministro: dificuldade em escolher boas equipas, incapacidade de acelerar a governação.

Na verdade, foi o primeiro-ministro que escolheu para si este papel subalterno, ao colocar os delfins no comando, pairando como um pai distante. Depois, claro, é sempre o último a saber. Dois exemplos de um certo desgoverno: o "Mais Habitação" é um pacote com algumas medidas desnecessariamente ideológicas, produzido nas catacumbas da máquina do PS-Pedro Nuno Santos, que deixa por estimular o motor principal -- investimento privado a produzir mais casas.

Segundo exemplo: a importância de Galamba. A fação Pedro Nuno Santos criou uma Comissão Técnica Independente (CTI) sobre o aeroporto e a presidente vem secundando publicamente as opções do ex-ministro -- Montijo e/ou Alcochete. Ou seja, a CTI existe para avaliar o real confronto quanto ao custo e impacto ambiental destas escolhas, mas os 25 estudos que faltam encomendar parecem inúteis. Não querem poupar tempo e dinheiro? Como dizia o constitucionalista Vital Moreira no seu blogue Causa Nossa, não se compreende como Rosário Partidário tem o antecedente de ter pertencido à equipa da proposta LNEC/Alcochete do tempo Sócrates e agora é a n.º 1 deste júri independente. Mas nas Infraestruturas deste Governo tudo parece possível.

Deste divórcio Costa-Marcelo sai ainda uma consequência política maior: a agonia do centro. O líder do PS sabe que esta maioria não é repetível e que a nova geração socialista vive bem com o regresso à velha geringonça PS-Bloco-PCP. O futuro do PS é sem dúvida mais à esquerda, através dos seus PNS-Galambas. Marcelo, na sua ânsia de defenestrar Costa, está a reerguer do túmulo a geringonça que ele tanto detestou. Portanto, dissolver não é hipótese. Presidente, se houver eleições, qual é a maioria parlamentar que não depende do Chega?»

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