«Coincidência ou não, depois de alguns meses de consecutivas peripécias e de pressões multilaterais para remodelar o Governo, António Costa redescobriu a classe média. Não sei se o seu ângulo de abordagem é o que interessa mais ao partido que lidera ou ao país, mas a verdade é que há aqui laivos de uma epifania política cujos próximos episódios podem cativar vasta audiência.
E o que disse, afinal, o primeiro-ministro? Para se defender a democracia e a liberdade, é necessário "dar oportunidades à classe média", considerando que, quando esse estrato social se sente "desamparado", cria-se "terreno fértil" para a extrema-direita. Não querendo desmentir o secretário-geral do PS, a verdade é que a frase "dar oportunidades" pode significar o início de um caminho rumo às legislativas de 2026. Quando há riqueza gerada, com ou sem ajuda de fundos europeus, a inteligência estratégica dos políticos aconselha a distribuí-la de forma sábia e pausada. Ou seja, não convém gastar as munições de uma vez só, tendo em conta que o beneficiário das medidas governamentais costuma ser mal-agradecido devido à sua memória curta.
Desde 2015, o discurso de Costa tem-se centrado mais na defesa dos mais pobres entre os pobres - atente-se no ritmo de aumento do salário mínimo e dos múltiplos apoios sociais criados ou reforçados -, mas terá agora chegado o tempo de olhar para o meio da pirâmide. A classe média representa mais de metade da população votante e tem sido empurrada sucessivamente para baixo, colando-se à base. Basta olhar para os setores e profissões que mais têm contestado o Governo através de greves. Estamos a falar de professores, oficiais de justiça e de enfermeiros. Não estamos a falar de quem ganha o salário mínimo, pese embora possa auferir rendimentos cada vez mais baixos em termos reais, devido à inflação, sem contar com apoios do Executivo para mitigar esse empobrecimento.»
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