8.5.23

Keep quiet and carry on

 


«Não ajudei a engrossar o momento mediático global que, ao que parece, ficou aquém do funeral da Rainha. Para quem, como eu, tem de se manter diariamente ligado à atualidade os momentos em que o jornalismo mete folga para dar lugar ao entretenimento são uma pausa excelente. Infelizmente, a festa da família disfuncional de herdeiros, que dá aos britânicos a ilusão de que o seu império ainda existe, lida mal com a contestação política.

É natural que assim seja. A única vantagem daquela monarquia é dar ao privilégio a capa do consenso, entretendo os pobres com a exibição do fausto do poder (a coroação terá custado, em plena crise, mais de cem milhões de euros). Como explicou a jornalista Polly Toynbee, outros monarcas europeus são “mais sábios e humildes”: Margrethe II, da Dinamarca, foi proclamada rainha da varanda de seu palácio pelo primeiro-ministro, e o rei Carlos Gustavo, da Suécia, não foi sequer coroado, limitando-se a assumir o cargo durante uma reunião do gabinete.

Perdi, por distração, a detenção de dezenas de republicanos por uma polícia zelosa em dar à democracia as roupagens falsamente unânimes que as ditaduras adoram. Dezenas súbditos incómodos foram removidos e encarcerados. Não sei se as televisões deram grande atenção ao sucedido. Não costuma caber no espetáculo encenado pelo poder em que participam com empenho.

A polícia twittou, no início da semana passada, que teria uma “tolerância extremamente baixa” para aqueles que procurassem “minar” o dia. A tolerância foi “zero”, na verdade. Graham Smith, líder do movimento “Republic”, foi parado, revistado e detido com outros cinco ativistas quando seguiam atrás de uma carrinha com cartazes, ainda antes do protesto. A razão da detenção terá sido a existência de tiras plásticas que seguravam algumas faixas que supostamente poderiam ser usadas para as pessoas se prenderem às estruturas. Isto num protesto em que a localização e a forma foram longamente negociadas entre a organização antimonárquica e a Scotland Yard. E foram cumpridas. A polícia metropolitana confirmou 52 prisões. Já tinha avisado que “a coroação é um evento único numa geração e essa é uma consideração importante na nossa avaliação”. Ou seja, liberdade, “ma non troppo”.

A Human Rights Watch condenou as detenções: “Os relatos de pessoas presas por protestarem pacificamente contra a coroação são alarmantes. É algo que se esperaria em Moscovo, não em Londres. Protestos pacíficos permitem responsabilizar os que estão no poder, algo a que o Governo parece cada vez mais avesso”. A Amnistia Internacional acompanhou: “Ter um megafone ou cartazes nunca deve ser motivo de prisão (...). A coroação não deve ser mais uma desculpa para minar direitos humanos fundamentais neste país.”

O Ministério do Interior tinha enviado previamente cartas de advertência às organizações republicanas. Um gesto que, vido do Governo, só pode ser visto como forma de intimidação. As cartas recordavam os termos da nova Lei da Ordem Pública, que, apesar de estar programada para meados de junho, foi antecipada para a semana anterior à coroação.

A lei levantou críticas violentas desde o momento em que foi apresentada. Os manifestantes que bloqueiem estradas podem ser condenados a 12 meses de prisão. Quem colar o seu corpo a outras pessoas, objetos ou edifícios poderá ser preso durante seis meses. Muito mais relevante: a polícia pode revistar e mesmo deter manifestantes se suspeitar que pretendem realizar qualquer atividade “disruptiva”. A definição do que é a “disrupção da vida dos cidadãos” é tão vaga, mesmo em protestos pacíficos, que várias associações acusam o Governo de afrontar a democracia. A polícia até pode impedir protestos antes que algo realmente aconteça. Uma espécie de “PreCrime” do filme “Minority Report”.

O propósito puramente político da legislação – feita à medida dos protestos que granjearam atenção a movimentos como Black Lives Matter, Extinction Rebellion e Just Stop Oil – ficou ainda mais evidente quando o diretor da polícia de Londres esclareceu que a polícia não tinha pedido ao Governo poderes adicionais para reprimir os protestos. Pelo contrário, deixou claro que tinha poderes suficientes. A nova lei deixa-os numa situação difícil, tendo de adivinhar quem pode vir a cometer um crime e a agir ou tarde demais ou em abuso de poder.

Leis deste tipo (ou para o envio de refugiados para o Ruanda) têm uma função para os conservadores: desviar o debate para a segurança ou a imigração, fugindo da catástrofe que têm sido os seus governos. Para não lhes fazerem o favor, os trabalhistas não se têm empenhado na resistência a sucessivos ataques a direitos fundamentais, banalizando-os.

Sobre os protestos, o deputado Lee Anderson, vice-presidente dos conservadores, que defende o regresso da pena de morte, escreveu: “Não é o meu Rei? Se não quer viver numa monarquia a solução não é vir com cartazes tontos. A solução é emigrar.” Um tweet que vale mil palavras sobre o amor que esta degenerescência conservadora tem à democracia.

O problema do “brexit” não foi dar ao povo o direito soberano a decidir de que união faz ou não parte. Assim devia ser em todo o lado. E se o significado de "take back control" fosse isto estaria alinhado com o que de mais profundamente democrático pode existir. Só que se tratou, como a campanha liderada pelo xenófobo Nigel Farage e pelo pantomimeiro Boris Johnson deixou evidente, de uma deriva autoritária que teve como primeiro mas não último alvo os imigrantes. Não vou repetir o "primeiro levaram os refugiados para o Ruanda e eu não liguei, porque não sou refugiado..." Já conhecem.

Quando se compra o ódio na política é certo que acabará por vir com o pacote completo. Começa a endurecer leis contra jovens ativistas pela justiça climática e acaba a remover preventivamente republicanos da rua, em dia de festa de “unidade nacional”, o sonho de toda a direita autoritária. Começa a meter refugiados em aviões para África e acaba a apontar o mesmo caminho para todos os que destoem da opinião “verdadeiramente nacional”.

O equívoco sobre a ascensão da extrema-direita é achar que o perigo é a sua chegada ao poder. O perigo é o que os seus vizinhos políticos estão dispostos a fazer e a dizer para o evitar. É por isso que, para além de umas bolsas resistentes na traumatizada Alemanha, a direita está a ficar cada vez mais parecida com a sua extrema. Até ser indiferente se esta chega ao poder, porque as suas ideias chegam lá antes disso.

Repito o que já tantas vezes escrevi: não há polarização na política europeia e americana. Há uma perigosa rampa deslizante para a direita. Na realidade, até fazia falta alguma polarização. Algum atrevimento na resistência, pelo menos.»

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