«Marcelo Rebelo de Sousa convocou os jornalistas para o que não era uma conferência de imprensa, desconvocou-os por não ter agenda, e, a essa mesma hora, passeou à frente do Palácio de Belém para lhes dizer que nada tinha para dizer que não tivesse dito antes. Se não nos tivéssemos habituado a situações caricatas este episódio seria motivo de galhofa durante dias. A falta de aprumo institucional tornou-se corriqueira. E, ao pé do que aconteceu no Ministério das Infraestruturas, até parece normal.
Claro que António Costa tem direito à sua vida privada e familiar. Mas é impossível não lhe ter ocorrido que, num momento em que o confronto semiótico entre o Presidente e o primeiro-ministro está ao rubro, dançar ao som dos Coldplay enquanto o ministro mais periclitante – que pode fazer cair um governo – era grelhado numa Comissão Parlamentar de Inquérito podia passar uma imagem de displicência, não de serenidade.
Neste momento, as duas principais figuras políticas nacionais estão a jogar poker aberto. E nenhum deles tem grande jogo. Não há qualquer pessoa no país que não perceba o que estão a fazer e, num momento em que o povo vive sérias dificuldades, essa perceção degrada ainda mais a confiança na política e nas instituições. É urgente que primeiro-ministro e Presidente da República esqueçam todas as jogadas anteriores e as que já tenham pensado para a frente. Que esqueçam as humilhações e os truques. Que se voltem a concentrar nas suas verdadeiras funções.
Seria excelente que Marcelo desarmasse a armadilha da dissolução. Se a tiver de usar, ela continua disponível. Mas mantê-la a pairar enfraquece-o mais a ele do que ao governo. Enviar recados, vindo de si ou de quem abusivamente fala em seu nome, de que fará cair Costa se este recuar e demitir João Galamba apenas serve para apodrecer ainda mais o ambiente político. Demitido agora ou mais tarde, este é um poder que é mesmo exclusivo do primeiro-ministro. Assumir isto implica o Presidente da República aceitar a derrota simbólica que infligiu a si mesmo quando abusou da ameaça dissolução para manter um governo sob tutela.
Costa deve aceitar que se o ministro das Infraestruturas não tem condições políticas para desempenhar as suas funções e deve ser demitido pelo menos fim da CPI, momento em que tiraria todas as conclusões, segundo disse. Independentemente daquilo em que cada um acredite, quem foi incapaz de gerir uma crise num gabinete e, tendo a iniciativa de despejar tudo na praça pública, a transformou numa crise política não pode gerir um ministério com esta sensibilidade. Ainda mais depois de ter envolvido o SIS e, com ele, meio governo. Isto implica o primeiro-ministro aceitar que o Presidente tinha, no que a este caso diz respeito, toda a razão. E que dar-lhe razão nisto não é dar-lhe o poder de demitir ministros.
O problema de Marcelo parece ser a pressão dos setores mais excitados da direita, regularmente representados pelos discursos ressentidos de Cavaco Silva – até falou da falta de respeito pela oposição, assunto em que a sua autoridade é menos do que nula. Se o ex-presidente quis pressionar e menorizar o seu sucessor, que conseguiu uma reeleição bem mais folgada do que a sua e níveis popularidade e abrangência com que Cavaco Silva nunca sonhou em Belém, o resultado foi outro: fazer parecer Luís Montenegro, para quem até guardou elogios, um líder fraco. As aparições do líder do PSD não são semestrais. E ninguém pode liderar a oposição pedindo diariamente uma demissão do governo. Ainda mais quando sabe que ela não irá acontecer. Cavaco foi a um encontro de autarcas sublinhar o que boa parte da direita vê como tibieza. E, de caminho, teve o efeito que tem sempre que abre a boca: deu alguma coesão a uma esquerda desmoralizada.
Voltando aos atores relevantes, e Cavaco Silva não o é há muitos anos, não sabemos o que acontecerá no futuro próximo porque eles próprios não o sabem. António Costa não sabe se ida a de Pedro Nuno Santos à CPI fará esquecer episódio de João Galamba e se o atual ministro, a que se agrilhoou, lhe reserva mais surpresas. Marcelo Rebelo de Sousa não sabe se a recuperação económica será suficiente para cobrir as perdas da inflação e do aumento das taxas de juro, a ponto disso se traduzir em alguma recuperação de votos para o PS. Saberá apenas que, chegados às eleições europeias, com uma abstenção enorme, corre o risco de ter o Chega com uma percentagem assustadora e, a partir daí, não poderá dissolver o parlamento.
Por mim, só sei uma coisa: enquanto debatem estes episódios e não o estado do SNS, a crise habitação ou a recuperação salarial, o PSD não ganha um voto. Se tivesse alguma coisa diferente para propor sobre estes temas ganharia em fazer deles assunto. É o que afeta a vidas concretas que levam as pessoas a querer mudar de governo. Assim como são eles que fazem os partidos à esquerda do PS roubar votos aos socialistas. Com a estas novelas, só ganha o Chega. A degradação das instituições faz Ventura parecer um político comum.
Cavaco Silva pode gritar o seu ressentimento tantas vezes como as que lhe ponham um microfone à frente. O fim desta crise artificial, divorciada da verdadeira crise que afeta os portugueses, está nas mãos dos dois principais atores políticos. O que temos de lhes explicar é que, neste tempo difícil, não precisamos de dois jogadores orgulhosos. Precisamos de dois homens de Estado.
O primeiro-ministro deve assumir que um ministro que perdeu as condições para o ser não as passa a ter só porque demiti-lo parece uma cedência ao Presidente. O Presidente deve assumir que a estabilidade política que nos prometeu não deixa de ser um objetivo só porque parte da direita a considera sinal de fraqueza. Pode fazer oposição, como fez Eanes a Soares, Soares a Cavaco e Cavaco a Costa. Não deve fazer do poder de dissolução o alfa e o ómega da política nacional. Se os dois fecharem esta novela com as decisões sensatas que já deviam ter tomado, os discursos invariavelmente raivosos de Cavaco valerão o que sempre valeram desde que saiu de Belém.»
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