29.5.23

Que se lixe o circo

 


«Apesar do crescimento económico, os portugueses vivem um momento extraordinariamente difícil. Os salários não acompanham a inflação e os aumentos das taxas de juro sobrecarregam os orçamentos das famílias endividadas. Os excedentes orçamentais não escondem a degradação dos serviços públicos e a sangria de profissionais qualificados do Estado. Jovens e menos jovens são expulsos de cidades transformadas em activos financeiros, numa crise da habitação sem precedentes. Há uma década, Luís Montenegro dizia, em defesa do Governo de Pedro Passos Coelho, que a vida das pessoas não estava melhor, mas o país estava muito melhor. Esse parece ter voltado a ser o discurso oficial.

O Serviço Nacional de Saúde, que já foi um dos maiores orgulhos da nossa democracia, tem sido uma das principais vítimas do desinvestimento nos profissionais do Estado e nos serviços públicos. No início do mês de Maio, abriu um concurso para 978 vagas para medicina geral e familiar. Apenas 393 médicos foram admitidos, todos os que concorreram. Num país onde quase 1,7 milhões de utentes não têm médico de família, este brutal falhanço não teve grande impacto mediático. A comunicação social estava concentrada noutros temas.

É com estupefacção que os subscritores deste texto observam o divórcio entre o debate político e mediático e a vida concreta das pessoas. Não desprezamos episódios que põem em causa a dignidade das instituições, mas nada corrói mais os alicerces da democracia do que a ausência de resposta às necessidades mais básicas da população. É incompreensível que as duas principais figuras do Estado se entretenham a medir forças entre si enquanto o país lida com dificuldades quotidianas.

É com estupefacção que acompanhamos as intermináveis novelas mediáticas. Entre o que é simbólico ou circunstancial e os crescentes problemas concretos das pessoas, existe uma absurda desproporção de atenção. Esta secundarização da crise social acompanha a tentativa de alimentar uma crise política artificial, instalando a ideia de que é preciso é mudar de governo sem que se discutam as grandes opções orçamentais.

Fora da bolha mediática onde Presidente da República e primeiro-ministro jogam o seu jogo cínico, o país tem tentado fazer-se ouvir. Nos protestos dos profissionais do Estado, abandonados no foguetório dos excedentes orçamentais. Nas manifestações de jovens pelo direito à habitação. E agora, em mais uma manifestação em defesa do SNS – depois da que se realizou no dia 20 de maio –, marcada para 3 de junho no Largo Camões, em Lisboa.

Defender a dignidade das instituições é, antes de tudo, travar a degradação dos pilares do Estado Social. A democracia portuguesa assenta na Escola Pública, no Serviço Nacional de Saúde e na conquista de direitos sociais e económicos para grande parte da população. A redução da política a episódios mais ou menos caricatos, para não discutir a vida concreta das pessoas, dirige o descontentamento para o populismo de extrema-direita, que se naturaliza perante comportamentos indignos de governantes sem ter de revelar as suas propostas.

Como democratas, desejamos condições políticas para que, à esquerda ou à direita, se confrontem alternativas que respondam aos problemas das pessoas. Temos problemas mais graves do que o paradeiro de um computador, tema que ocupou três semanas do tempo mediático. É urgente recentrar o debate político. O nosso lado é a defesa do poder de compra do povo e da dignidade do Estado Social.

É para dar voz a um país que não se contenta com o entretenimento informativo e quer a vida das pessoas no centro do debate político que, no próximo dia 3, exigimos que a salvação do SNS se transforme numa verdadeira emergência nacional. Há uma década gritámos: "Que se lixe a troika, queremos a nossas vidas". Hoje, é tempo de gritar: "Que se lixe o circo, queremos as nossas vidas".

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