15.5.23

Tabaco: um Estado solidário e regulador não é um Estado tutor

 


«Acho muito bem que a lei proteja quem não quer ser fumador passivo, proibindo o consumo onde outros sejam obrigados a fumar contra a sua vontade. Compreendo que isso se estenda a lugares fechados onde haja trabalhadores, apesar de esperar que o Estado tenha igual empenho na prevenção de outros danos desnecessários graças a más condições de trabalho em tantas atividades. Compreendo limitações em alguns lugares ao ar livre em que as pessoas tenham de estar próximas.

Mas a lei deve servir para defender das escolhas de outros quem não quer fumar, não para defender das suas próprias escolhas quem quer fumar. Em nome de quê se proíbe de fumar ao ar livre em espaços em que o distanciamento existe? Porquê à frente de faculdades e edifícios públicos? É simbólico? Porque não se pode fumar à porta de restaurantes e bares? Para torturar os fumadores? Porque raio se proíbe a venda em cafés e restaurantes? Para obrigar o fumador a não fumar por não conseguir comprar? Para impor a fumadores a abstinência forçada?

Respondendo à deputada Isabel Moreira, que recordou que fumar é um ato lícito e que restrições só podem ser introduzidas na lei pelo Estado para proteção de terceiros, o ministro da Saúde disse que “está em causa apenas a contenção do fumo do tabaco nos espaços onde esse fumo acaba por prejudicar as pessoas que se encontram à volta". Isto é falso. É falso em algumas das restrições, mas, acima de tudo, é falso na latitude da proibição de venda de uma droga e livre para maiores de idade. Que direitos de terceiros se querem proteger quando se proíbe a venda em praticamente todo o lado para lá de tabacarias, gares e aeroportos, condenando terras pequenas à total proibição de venda de cigarros?

Uma coisa é proteger a saúde das pessoas, outra é proteger as pessoas das suas escolhas. Mas, na verdade, tem tudo a ver com o ar dos tempos. À medida que o Estado vai abandonando as suas funções sociais para proteger os cidadãos da pobreza e as suas funções regulatórias para proteger os cidadãos do abuso e da exploração, mais se dedica a proteger as pessoas delas próprias.

O álcool é legal e, em Portugal, a pressão social para o consumir é enorme – sei, porque praticamente não bebo. É o mesmo Estado do puritanismo antitabágico que vende sem qualquer limite, através da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, raspadinhas a velhos dependentes, contribuindo, apesar de todos os avisos feitos por estudiosos, para a destruição da vida financeira de famílias geralmente mais pobres e vulneráveis. Mas em relação ao tabaco parece não haver limites para o papel que o Estado se atribui a si mesmo.

Diz o governo que o objetivo é chegar a 2040 com uma geração sem tabaco. Todos conhecemos esta conversa redentora em relação à droga. Há décadas que se sonha com um mundo sem droga e, à conta disso, criou-se uma cultura proibicionista que alimentou a criminalidade, reforçou as pulsões securitárias do Estado (quase sempre contra as comunidades mais pobres), consumiram-se recursos inimagináveis e o resultado não é animador.

Fumei mais de dois maços diários, desde os 16 anos, quase durante três décadas. Deixei de fumar há oito anos. Acho que foi das decisões mais difíceis de manter na minha vida. Que papel teve o Estado na decisão de deixar de fumar? Não foram seguramente as insuportáveis campanhas puritanas. Talvez as consultas gratuitas de cessão tabágica na Unidade de Saúde Familiar que me serve tenha sido a mais relevante. E aquela que, como cidadão e contribuinte, espero do Estado.

Como o tabaco não é uma droga que afete o discernimento a ponto de tornar o fumador incapaz de ter vontade própria, ele deve ser tratado como um adulto capaz de tomar decisões livres sobre si mesmo. Aquilo de que precisamos é de um Estado solidário e regulador, que não deixe ninguém para trás e proteja os direitos de todos. Não precisamos de um Estado tutor. Por mim, que abandonei quase todos os vícios, não quero viver num mundo higienizado, sem vícios e sem drogas. Quero viver num mundo de adultos livres para fazerem as suas escolhas.»

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