«Vasos com flores secas. Calendários desatualizados. Ordens de serviço afixadas, mas já fora de prazo. Cadeiras partidas e não removidas. O que tem isto que ver com recursos financeiros e respetivas prioridades? Tem que ver apenas com desleixo, ausência de zelo e irresponsabilidade. De quem? Das respetivas administrações.
Hesitei muito tempo em tomar uma posição pública sobre o que se passa no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e particularmente no Instituto Português de Oncologia (IPO), de que sou utente há mais de uma década. Por razão da responsabilidade institucional e pública que exerço. E porque não pretendo qualquer atendimento distinto daquele que têm os restantes utentes. Mas a admiração que tenho por todos os profissionais, que nas condições mais adversas trabalham nos hospitais públicos e os direitos dos doentes, levam-me a quebrar o silêncio.
Esperei meses para obter um exame, pese embora as diligências dos médicos, atendendo a ter uma doença em progressão com elevado grau de risco, o que veio a confirmar-se quando finalmente realizei o exame; faltas constantes de material básico como adesivos ou desinfetante adequados à natureza da intervenção; a ausência de um simples cabide para pendurar a roupa na sala de quimioterapia; esperas prolongadas; um contentor transformado em sala de quimioterapia; tudo bem diferente, para pior, de quando comecei a ter necessidade de recorrer aos serviços daquela que é considerada, em Portugal, uma unidade de referência no domínio oncológico.
Há poucos anos, um dos mais qualificados quadros do corpo médico, um especialista de referência, suicidou-se no próprio serviço. Ignoro os motivos. Ou se teve algo que ver com o serviço. Mas não ignoro como o assunto foi rapidamente retirado de qualquer escrutínio. Quem lá trabalha, médicos, enfermeiros e restante pessoal de apoio, imagino as estórias que tem para contar. Porque, nas horas de espera em que se aguarda o atendimento, o que escutamos de gente simples, que viaja centenas de quilómetros para poder acrescentar alguma esperança à vida, é aterrador.
A responsabilidade política pelo que hoje se passa no Serviço Nacional de Saúde tem uma dimensão inaudita. O facto de o recurso ao SNS ser feito na esmagadora maioria por pessoas de níveis sociais baixos, sem meios financeiros para recorrer ao privado, com pouca capacidade expositiva e reivindicativa, faz com que o que é do conhecimento público seja sobretudo canalizado pelos grupos profissionais que lá trabalham e respetivas organizações de classe e de uma ou outra denúncia da comunicação social.
A completa partidarização de cargos de topo de responsabilidade administrativa e gestionária, a presença de pessoas preparadas para perceber de números e contas, mas completamente insensíveis à doença e ao sofrimento dos outros, no plano humano e comunicacional, traduz-se na degradação de um serviço justamente apontado como uma das grandes conquistas do regime democrático.
Durante muito tempo também me cansava das sucessivas denúncias dos responsáveis da Ordem dos Médicos ou da classe dos enfermeiros sobre a situação do setor. Hoje sinto que fazem falta. E que as suas denúncias eram, e são, afinal, as únicas que não silenciam o que se passa no SNS.
Quem entra uma vez no IPO nunca mais de lá sai. Nem que seja para saber que a situação que lá o levou está ultrapassada. Mas é sempre preciso lá voltar para verificar se não ocorreu uma recidiva. É um regime de visitas periódicas. De liberdade vigiada. Nem a quem é preso isto ocorre. Cumprida a pena, se não houver novo crime, não regressa. No IPO é para o resto da vida. E, à medida que ela encurta, percebemos que o que devia estar a corresponder ao que dele necessitamos se está a degradar, acrescentando à doença uma outra dor.
Este é o testemunho de um doente cansado, triste, desalentado, mas não resignado. Que ele possa ser útil aos que a vida, um dia, levou para aquelas bandas!»
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