11.6.23

A questão cigana

 


«É possível assistir hoje, aqui e agora, numa povoação perto de nós, em Portugal (mais no Sul do que no Norte porque é no Sul que se dá uma junção de factores e não porque a razão maléfica germine melhor nesta região), à expulsão de membros de uma população de indesejáveis e até ver graffiti, escritos nas paredes como leis escritas na pedra, que são indesejáveis e devem ser postos “ao bando”, para utilizar uma fórmula antiga, recuperada pela biopolítica? Pode-se, sem temer a lei e protegido pelo silêncio público, tratar uma população como escumalha e encarnação ignóbil da figura dos párias da história, submetendo-a a uma dupla operação – só aparentemente contraditória – que consiste em expô-la e ao mesmo tempo torná-la invisível?

Sim, pode-nos calhar em sorte e se estivermos atentos assistir à repetição dos progroms que têm como objecto, no duplo sentido desta palavra, uma população estigmatizada e tão fortemente etnicizada que essa etnicização é imposta como modo de categorização política. Falo, como já se percebeu, dos Ciganos, os “Tsiganes”, os “Gitains”, os “Roms”, todos esses nomes que mostram bem que houve uma disseminação desse “povo” em toda a Europa. Mas com palavras semelhantes poderia estar a falar dos judeus na Alemanha nazi – dos judeus que desde o final do século XIX suscitaram o medo e o fascínio do capital “sem pátria”, numa época em que se dava a concentração territorial do Estado-nação, na Europa. Tal como aconteceu aos Judeus, os Ciganos também são tratados como gado, muito embora o factor “dinheiro” não lhes diga respeito e o factor “sem pátria” os afecte apenas na medida em que são vistos como “estrangeiros do interior”. A ciganofobia não é censurada socialmente, nem sequer é reconhecida como forma de racismo: é um reflexo de protecção contra gente representada como essencialmente delinquente e traficante. “Essencialmente”, porque se trata, segundo o senso comum, de transmissão pelo sangue que lhes corre nas veias e por determinação biológica.

Já não se pode dizer que são uma “população nómada”: o seu nomadismo tradicional teve que ser abandonado porque desapareceram as condições para praticá-lo: não há as estradas e os caminhos antigos, não há os terrenos sem vedações e sem muros, não há guaridas sem cadeados, não há regras de hospitalidade. Se ainda estão obrigados a algum nomadismo é por motivo de expulsão e porque não há lugar para eles. E nem sequer se procura saber qual é o lugar que eles deveriam ter. O nomadismo, hoje, num tempo em que velocidade anulou o espaço, só é praticável se for chique, como são os “nómadas digitais”. Em 2010, num tristemente célebre discurso em Grenoble, o então Presidente francês, Nicolas Sarkozy, referiu-se aos Roms como exemplo, maior entre todos, dos causadores de problemas que “les gens de voyage” colocam. Em vez de “nómadas”, Sarkozy preferiu uma designação administrativa: “gens de voyage”.

Mas regressemos à terra, à nossa terra, mais a Sul do que a Norte, mais no interior do que no litoral, onde, apesar de tudo, foi conseguida alguma integração. Seja de esquerda ou de direita, o poder local responde, por convicção ou por eleitoralismo, aos desejos da população: e esses desejos consistem quase sempre em evacuar, expulsar, terraplanar, construir muros. Não por determinações ideológicas ou instintivas maléficas, mas porque foram instruídos e habituados a ver essa gente como dejectos: traficantes (mas que outra maneira têm de chegar à “mercadoria”?, renitentes ao trabalho (mas quem lhes daria emprego, se eles contrariassem o reflexo de nem o procurar?), dados a uma procriação demasiado abundante e precoce, com uma “cultura”, se se pode dizer assim, que reproduz no seu interior hierarquias e relações de dominação e de propriedade sobre as mulheres e os filhos que não podem ser toleradas.

Quanto ao poder central, este nunca se mostrou capaz de enfrentar aquilo a que podemos, sem medo das ressonâncias desta locução, chamar “a questão cigana”, que existe há séculos e que foi acumulando hostilidades recíprocas, perseguições, dificuldades de convivência. E isso só estimula a regressão identitária: quanto mais são tratados como escumalha, quanto mais se mostram resistentes (sucessivamente à escravidão, ao holocausto, aos progroms, à exclusão) mais os Ciganos se protegem com o orgulho da “raça” e os enraizamentos culturais. Não sejamos inocentes: uma questão deste tipo não se resolve com voluntarismos e acções avulsas apenas localizadas nalguns focos: exige uma tarefa ingente que mal foi começada.»

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