21.6.23

Futebol: os podres que se escondem à vista de todos

 


«Trancados com cadeados numa academia de futebol, aos grupos de dez a doze jovens amontoados em beliches em cada quarto, com o passaporte confiscado à entrada, sem acesso à escola onde nunca foram inscritos e sem poder sair a não ser para ir treinar. Era este o ambiente concentracionário, onde imperava a pressão psicológica e ameaça física, que se vivia na BSports, uma academia agora desmantelada pelo Ministério Público com a acusação de envolvimento no tráfico de pessoas. O relato é de um jovem guineense com 20 anos, Kelly, que fugiu da academia quando percebeu o esquema de enganos e mentiras em que se tinha visto envolvido. Tinha o sonho de percorrer o caminho do seu primo, Ansu Fati, estrela do Barcelona e internacional por Espanha.

Como diz Joaquim Evangelista, presidente do Sindicato dos Jogadores de Futebol, numa entrevista ao “Público”, “este caso abala os alicerces do futebol”. Tem razão. O dono da academia é Mário Costa, presidente da Mesa da Assembleia Geral da Liga Portuguesa de Futebol Profissional até ter renunciado ao cargo, depois de ter sido constituído arguido.

O principal patrocinador da academia era a empresa que dá o nome à Liga de Honra, o segundo escalão mais importante do futebol em Portugal, e o presidente Sapgem detém uma participação na Sociedade Anónima Desportiva do Lusos DB, um dos clubes associados ao centro liderado por Mário Costa.

O esquema montado revela uma verdadeira economia circular. Um dos principais dirigentes da Liga adquire pequenos clubes na zona norte do país para aí colocar a rodar jovens que vai aliciar a África, Ásia e América Latina, a quem cobravam entre 600 e 2000 euros por mês. Joaquim Evangelista diz que este caso, embora com ligações ao mais alto nível do futebol, é a ponta do icebergue da exploração ilegal de jovens estrangeiros que o sindicato tem vindo a denunciar.

Do conflito de interesses que devia ser evidente, mas nunca preocupou a Liga e os clubes, ao grau zero de moralidade que revela sobre o mundo que gravita à volta do futebol, é exemplar sobre a tolerância e falta de escrutínio que impera na atividade que ocupa maior tempo de antena no país.

O futebol é o único caminho que muitos jovens miseráveis imaginam para sair de um mundo de privações. É um sinal de esperança para milhões para conquistarem um lugar na vida onde só cabem muito poucos. Por cada Ronaldo, Messi ou Fati há um exército de jovens prostrados nos seus sonhos e um sem número de Kellys, explorados por todo o tipo de oportunistas sem escrúpulos.

Num país onde o futebol ocupa um espaço mediático sem paralelo, são raras as vezes que se discute o que por ali realmente acontece. Os negócios, os esquemas e o que gravita em seu redor. Porque a comunicação social aceita ficar-se pelo papel de parceira de um espetáculo que vale muito dinheiro. E porque é impossível discutir o que quer que seja que envolva Benfica, Porto e Sporting.

Mário Costa era um dos dirigentes mais poderosos do futebol português, mas não estava ligado a nenhum dos “grandes”. Se estivesse, logo se alinhariam, nas redes sociai, exércitos em defesa do mérito do trabalho da BSports na integração e formação de jovens. Neste ambiente tóxico, tudo é pretexto para o confronto tribal, alimentado por “diretores de comunicação”, em que se cauciona tudo o que se critica fora do mundo da bola, da corrupção à violência.

É o medo que este clima inspira ao poder político, mediático, económico e até policial e judicial que explica que o lado obscuro do futebol se vá escondendo à vista de todos. O poder do futebol advém deste sentimento de impunidade, da ideia que se move por outras regras e está sujeito a um escrutínio diferente ao aplicado a outras atividades. É assim que figuras do calibre de Mário Costa chegam a cargos de topo sem qualquer rebuço moral e sem que alguém os questione sobre os conflitos de interesses nos seus negócios, evidentes muito antes de se conhecer a exploração da dignidade humana em que assentavam.

No início desta época desportiva, em setembro, foi notícia que Fábio Lopes, um popular apresentador de rádio, tinha deixado dezenas de jogadores dos distritais na miséria, depois de uma série de promessas irrealistas que nunca foram cumpridas. Os contornos do caso são bem diferentes, bem sei, mas vale a pena lembrar como depois da indignação momentânea, tudo voltou ao lugar de partida como se nada tivesse acontecido. Escondido à vista de todos. Como sempre.»

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