14.6.23

Não foi Trump, foi Berlusconi

 


«Com a eleição de Trump e o referendo que conduziu ao Brexit intervalados por poucos meses, 2016 costuma ser apresentado como o ponto de viragem para a “era dos populismos”. Convém não esquecer que, duas décadas antes de Donald Trump, Boris Johnson, Jair Bolsonaro ou Viktor Orbán, já um homem tinha revirado o sistema partidário e a forma de fazer política numa das mais importantes economias do planeta.

Silvio Berlusconi usou o seu sucesso empresarial como trunfo eleitoral, a vitimização contra os juízes como instrumento de mobilização, a luta contra as elites como força aglutinadora e o seu domínio dos códigos comunicacionais para reduzir a política e o debate público a uma infindável sucessão de polémicas que garantiam que nada se discutia. O ódio às mulheres, ora resumidas a bibelot para homens de sucesso ou a seres “feios e sem sexo” de cada vez que se lhe opunham, apelava ao universo de homens marcados por uma cultura machista e em sentimento de perda. O registo polémico permanente, que se tornou uma das suas imagens de marca, bem longe das gafes que muitos recordam com bonomia, fez parte de uma dupla linguagem política milimetricamente calculada. O guião estava lá todo.

A polarização crescente das nossas sociedades tem sido incendiada por algoritmos e bolhas virtuais, criando uma sensação de permanente indignação com o mundo e o “outro”. O que distingue Berlusconi nem é ser o percursor, é ter conseguido implantar a espetacularização radical da política antes das redes sociais.

Berlusconi foi o principal obreiro da viragem política de Itália para a direita da direita. Formou o seu primeiro governo com a Liga Norte e a Aliança Nacional, caucionando e normalizando a direita populista secessionista e a extrema-direita saudosista de Mussolini. Ele próprio o disse, há poucos anos: "Fomos nós que legitimámos a Liga e os fascistas". Aqueles de que hoje a Força Itália é uma aliada menor.

O homem que criou um império privado com complacência e até apoio do poder político – nomeadamente do seu padrinho de casamento e histórico líder socialista, Bettino Craxi – conseguiu ganhar umas eleições aprestando-se como a continuidade do moralismo justicialista e o líder musculado que não precisou do sistema político dominante para triunfar. A transformação do homem mais poderoso de Itália num homem do povo foi a maior operação de marketing da mais poderosa máquina de comunicação de Itália. Foi o momento em que o poder económico dispensou os seus agentes políticos e tomou o governo diretamente nas suas mãos, apresentando-se contra o sistema de que sempre beneficia e de que é força motriz.

Claro que Berlusconi não moralizou coisa alguma, nem alguma vez teve essa intenção, ajudando a destruir os poucos alicerces em que assentava a coesão da sociedade e da democracia italiana. A alienação do seu império televisivo, a grande promessa do seu primeiro mandato perante o evidente conflito de interesses, nunca se concretizou. O mesmo aconteceu com a promessa que não se recanditaria, da segunda vez que liderou o governo, se falhasse mais do que uma das cinco promessas do seu “Contrato com os Italianos”.

Para perceber como toda esta operação foi possível é preciso recordar que o sistema partidário italiano do pós-guerra foi construído para conter o mais poderoso e influente partido comunista da Europa ocidental. Entre 1981 e 91, na sequência do colapso do "Compromisso Histórico" entre a Democracia Cristã e o PCI, a Itália foi governada ininterruptamente pelo “Pentapartito”, uma larga coligação constituída pela democracia cristã, socialistas, sociais-democratas, republicanos e liberais. Este acordo é posto em causa pela entrada em cena da operação “Mãos Limpas”, uma série de investigações judiciais que fez tremer o sistema político de alto a baixo. Mais de metade dos deputados foram acusados e cerca de 400 autarquias viram os seus executivos demitidos. É neste contexto que Berslusconi, sabendo que também está a ser investigado, dá um salto em frente e candidata-se à liderança do país para evitar ser condenado.

Com a vitória iminente dos comunistas, Berlusconi faz uma campanha de medo contra a ideia de um país com uma economia plenamente integrada na Europa e com políticas de mercado ter um governo liderado por comunistas. Se o resultado político dos seus governos foi permitir a ascensão da extrema-direita ao poder, a partir do centro-direita, o seu apelo original foi aos eleitores socialistas e democratas cristãos desiludidos com os escândalos judiciais. Berlusconi foi um personagem principal nesta viragem política à direita, mas contou com a ajuda conivente de uma esquerda que se suicidou em lutas autofágicas, no caso dos socialistas, e na descaracterização até ao absurdo dos comunistas que hoje se encontram à direita dos sociais-democratas.

O seu aparecimento é tão transformador e radical como em todos os meios onde se tinha movimentado até aí. Na comunicação contruiu um império privado sempre no fio da navalha da lei, contornando a legislação que impedia a difusão nacional de canais privados, tornando a informação em entretenimento e os debates sobre futebol numa gritaria permanente guiada pelo tribalismo clubístico com a arbitragem ou a polémica artificial da semana. No futebol, construiu a equipa que abriu caminho para as atuais superequipas, o Milan dos “três holandeses”, e a sua transformação num produto essencialmente televisivo. Foi percursor em muita coisa.

Na política, criou um partido-empresa de que era CEO e proprietário. A lista de deputados foi constituída pelos seus principais dirigentes empresariais, depois de uma breve formação política e de comunicação perante as câmaras de televisão. E a experiência foi levada para o Governo. O programa da Forza Italia foi construído pelos responsáveis do marketing. A empresarialização da política, que levou a cabo, é um subproduto da tecnocracia que tomou conta da política depois do esvaziamento das diferenças programáticas impostas por um modelo único económico e de integração europeia.

O resultado não foi brilhante. A chegada de Berlusconi ao poder e a operação “Mãos Limpas” redefiniram o sistema partidário, com a pulverização dos antigos partidos dominantes, substituídos pela extrema-direita nas suas formas populista e fascista. A moralização anunciada pelos juízes não mudou nada de estrutural na sua relação promíscua entre política e economia. Limitou-se a mudar os seus agentes. E a suposta modernização económica, que tratou a governação de um país como se fosse a gestão de um grupo económico, conseguiu que Itália fosse o país europeu que menos cresceu desde a adesão ao euro, em 2002. Menos do que a Grécia e do que o Reino Unidos, os dois piores, e quase metade de Portugal.»

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