18.6.23

O tweet de Guterres

 


«No dia em que Nova Iorque foi coberta de fumo originado nos incêndios do Canadá, António Guterres publica um tweet com uma fotografia sua acompanhada de uma legenda. Na fotografia, tirada numa sala das instalações da ONU, vê-se em primeiro plano uma mesa ladeada de cadeiras vazias; mais ao fundo, à esquerda, recorta-se a silhueta de Guterres, que olha através de uma grande janela quadriculada para os arranha-céus que assomam por entre o fumo. A legenda diz: “Com as temperaturas globais a aumentar, a necessidade de reduzir urgentemente o risco de incêndios florestais é urgente. Temos de fazer as pazes com a natureza. Não podemos desistir.”

Este dever de “fazer as pazes com a natureza” pode ser facilmente visto como um banal floreado, quando, na realidade, traduz um dever cujo incumprimento compromete seriamente o lado prazeroso de se estar vivo. A imagem, por sua vez, é única nos tweets de Guterres, e quem a tirou soube avaliar o valor estético e político que aquele quadro particular representava. De uma janela da sede da ONU, Guterres olha para o cenário proto-apocalíptico que se estende à sua frente. Interrogamo-nos sobre o que poderá estar a pensar e a sentir, para além da legenda.

Nos últimos anos, Guterres tem-se desdobrado em esforços que muitos consideram ineficazes, indicando a falta de operacionalidade da gigante e datada organização de que é secretário-geral. O que pode estar bem longe da verdade. Não só Guterres conhecerá bem os seis relatórios do IPCC, Intergovernmental Panel on Climate Change, como terão também a si chegado outras investigações relativas às frentes que a organização estabeleceu em 2016, nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Destes vários tópicos e de toda a sua outra atividade, chegar-lhe-á informação sobre o combate à pobreza; migrações; racismo; qualidade da educação; igualdade de género; luta por energia limpa e por cidades e comunidades sustentáveis; guerra e paz; geopolítica; equidade e justiça.

Só talvez a confluência e cruzamento de toda esta informação possa proporcionar um voo analítico geral sobre as realidades desconcertadas e assimétricas da cultura humana, que desembocam na tripla crise que vivemos — alterações climáticas, perda de biodiversidade e poluição. Talvez seja esse voo de pássaro o que permite a Guterres, como a nenhuma outra personalidade da atualidade política, fazer os diagnósticos corretos e comunicá-los: “É imoral que as petrolíferas e as empresas de gás estejam a fazer lucros recordes a partir da crise energética à custa de pessoas e comunidades, com um custo enorme para o clima (...) Exorto as pessoas em todo o mundo a enviarem uma mensagem clara à indústria dos combustíveis fósseis e a todos os seus financiadores: esta ganância grotesca está a castigar as pessoas mais pobres e vulneráveis, enquanto destrói a nossa única casa.”

Entretanto, fazendo ouvidos de mouco, desconfia-se de que os jovens ativistas estejam apenas a viver os seus “400 coups", entretidos com ideias revolucionárias para passar o tempo. Há também quem desconfie de que o ativismo climático se reduz ao efeito-melancia — verde por fora, vermelho por dentro. São suspeitas cinzentas que, com boa vontade, se acabam por entender. Mas não confiar no que António Guterres nos tem vindo repetidamente a dizer é apenas descabido: será apenas uma questão de iliteracia ambiental — a raiar o comportamento de uma avestruz.

Falta-nos procurar saber pelo menos quase tanto como António Guterres e, com ele, olhar para Nova Iorque coberta de fumo com perplexidade — e resolução para agir.»

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