29.7.23

O caminho perigoso do Presidente da República

 


«O Presidente, quando da “crise Galamba”, percebeu que não tinha condições para dissolver o Parlamento e por isso não teve outro remédio senão aceitar o facto consumado que o primeiro-ministro lhe colocou sobre a mesa. Fez então uma declaração de hostilidade ao Governo, anunciando que a partir desse momento ia ser particularmente vigilante sobre os actos da governação. Já de si esta declaração é politicamente inaceitável, porque, das duas uma, ou o Presidente tinha sido até então complacente com o Governo e fechava os olhos àquilo com que não concordava, o que não era suposto, se os assuntos fossem sérios; ou ia de algum modo “vingar-se” de António Costa, criando-lhe todas as dificuldades para a sua governação. A partir desse momento, o Presidente, todas as vezes que falava, e como se sabe ele fala muito, criticava o Governo, com mais ou menos dureza. E passou também a fazer essas críticas nos textos de promulgação dos diplomas. Passou a haver, mais do que já havia e com uma nova hostilidade, uma espécie de metadiscurso presidencial sobre a governação que não está de todo implícito no modo como no nosso sistema constitucional funciona o “semi” no “semipresidencialismo”.

Em si, este procedimento não é novo. Já houve vários casos com Eanes, Sampaio e Soares, menos com Cavaco, em que os presidentes e os governos entram em rota de colisão. Em muitos casos, dos quais o mais paradigmático foi o segundo mandato de Soares, esse confronto era completamente público e com um elevado grau de hostilidade. O congresso que Soares organizou contra o Governo de Cavaco Silva e as “presidências abertas” correspondiam a uma contínua manifestação de confronto político. Sampaio despediu Lopes por “indecente e má figura” e dissolveu uma Assembleia em que este tinha maioria, mas presumia que o eleitorado lhe dava razão, como deu.

Marcelo está a fazer uma coisa diferente e num certo sentido pior, está a contragovernar, não só por pensamentos, como por palavras e, acima de tudo, com obras. Independentemente do julgamento que se possa fazer sobre o diploma do Governo a propósito das carreiras dos professores, ele é um acto legítimo de governação. É suposto que, quer o Presidente concorde ou não com o diploma, não o vete em função dessa discordância, porque não é o Presidente que governa. Que verifique a sua constitucionalidade, muito bem, que faça um julgamento no limite sobre a sua “perigosidade social”, pode fazê-lo, mas já na linha vermelha de uma opinião de governação cujas consequências não é ele que gere, nem no passado, nem no presente, nem no futuro.

Não parece que este diploma esteja ao nível da legislação francesa sobre a idade da reforma que provocou os grandes tumultos na rua, embora não custe admitir que não resolve os conflitos com os professores, e não acabará com as greves nas escolas, mas esse julgamento é um puro acto de governação para o qual o Presidente não foi eleito. Aliás, o Presidente foi mais longe sugerindo que as duas áreas, educação e saúde, deviam ser privilegiadas nos gastos do Estado em salários, mesmo que isso crie uma situação de desigualdade com outros sectores da função pública. Em teoria percebe-se, mas de novo essa opção é do domínio da governação e não cabe ao Presidente interferir nas prioridades, certas ou erradas, de um poder que não é o seu. Se o diploma não acaba com as lutas dos professores, o que é uma presunção razoável, a disparidade de critérios criando desigualdades gritantes na função pública é igualmente um factor poderoso em abrir outras frentes de conflitualidade. “Porque é que eles têm essas medidas e nós não temos?”

Acresce que tenho a séria suspeita de que um certo afã despesista dos dinheiros públicos que vai do Chega, passa pela IL e pelo PSD, e termina agora no Presidente teria como consequência que o Governo, ao fazer crescer o défice, deixaria de ter “contas certas” e haveria uma fronda de críticas, que agora não podem fazer, logo em seguida. É curioso ver como os partidos que nunca gostaram dos funcionários públicos, em particular dos professores, e que estavam sempre a falar do despesismo do Estado na sua máquina agora querem tudo, repor integralmente aquilo que cortaram aos professores, reformados, pensionistas – lembram-se da troika e do Governo Passos-Portas-troika? O que é interessante é ver que são os mesmos que são ainda hoje um eco da senhora Lagarde na necessidade de contenção de salários e, em plena contradição, querem agora a política que sempre criticaram. O que os afecta é que o PS tem sido mais eficaz nessa política de “contas certas”, cuja acção tem muito mais continuidade com a da direita no poder do que podem admitir.

Como presumo que o Chega, o PSD e a IL, como o Presidente, não se tornaram esquerdistas no despesismo, esta contradição vem muito mais de uma lógica de oposição em todos os azimutes, ou, no caso do Presidente, de exorbitar as suas funções para “pôr o Costa na ordem”, do que de uma posição de fundo. É por isso que a contragovernação do Presidente gera instabilidade social, ou talvez a secreta esperança que Costa, não conseguindo governar, mande tudo às malvas, para ver se alguém consegue ganhar uma eleição ao PS.»

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