“Acorrupção exprime a forma geral da vida desordenada do ser humano decaído (…) é mais desastrosa do que a lepra infame (…) “ela nasce de um coração corrupto e é a pior chaga social”
Papa Francisco, in “Corrosão: combater a corrupção na Igreja e na sociedade / Peter K. A. Turkson, Vittorio V. Alberti, (ed. Paulinas), janeiro 2018.
Assistimos por estes dias a um dos mais magnificentes eventos para a comunidade católica (na qual me incluo) – a Jornada Mundial da Juventude, uma emulsão profilática da fé individual expressa na Igreja universal, de inegável conforto espiritual para todos quanto nela participam e irrefutável valor para o reforço e futuro da congregação cristã.
Sobre esta peregrinação da juventude vinda dos quatro cantos do mundo, para neste Estado laico, mas de maioria católica, se encontrarem com Sua Santidade o Papa Francisco, considerável vozearia tem ecoado, não tanto sobre a oportunidade do evento, mas antes no que sugere a opção do seu modelo de financiamento.
Portugal decidiu (ao contrário do que sucedeu por exemplo em Espanha em 2011, em que os 50 milhões de euros gastos na preparação do evento foram integralmente financiados por privados, incluindo peregrinos) por uma solução do género “parceria público-privada”: constituiu-se a Fundação JMJ, entidade que representa juridicamente a organização da Jornada, de caráter privado, na qual três entidades públicas (Governo e Câmaras Municipais de Lisboa e Loures) investiram o que não se conseguiu ainda apurar com precisão, postergando-se para ulterior momento, a contabilidade final do evento.
Estima-se, contudo, que o impacto económico global da JMJ seja francamente superior ao investimento, de acordo com o estudo encomendado à PWC Portugal, pela Fundação.
Um evento desta envergadura, com uma organização necessariamente complexa, não podia ter deixado de ser eficientemente planeado, relativamente a todas as suas condicionantes. Mas em Portugal, sê português.
Ao contrário do que os mais elementares princípios de gestão pública exigem, e como mestres que somos da arte da improvisação, ao termos assistido impávidos à natural (e sempre ávida) inexorável passagem do tempo (aliás dilatado, atendendo à situação pandémica), sem concretizar atempada e eficazmente as várias fases do projeto, através de uma estrutura inequívoca de comando que se responsabilizasse pelo sucesso deste, eis que, no que à condicionante financeira respeita, desatámos a contratar freneticamente, com recurso a, pois claro, ajustes diretos.
E foi assim que, com suporte na hábil norma jurídica introduzida no Orçamento Geral do Estado (artigo 118.º da Lei n.º 24-D/2022), votada favoravelmente inclusive por aqueles que, na oposição, brandem agora a espada da transparência, 82% do total da contratação pública para efetuar este evento foi realizada através de ajuste direto, em especial a 10 singelas empresas, as quais arrecadaram cerca de 85% do valor total contratado.
Esta constatação teria o interesse que lhe quiséssemos dar, malgrado uma panóplia (também ela inexorável) de alertas e proclamações públicas (bem prega Frei Tomás, faz o que ele diz, não faças o que ele faz) disseminadas em:
1. Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024/Regime Geral de Prevenção da Corrupção: “as entidades públicas … adotam as medidas que, de acordo com as circunstâncias, se revelem adequadas e viáveis no sentido de favorecer a concorrência na contratação pública e de eliminar constrangimentos administrativos à mesma, desincentivando o recurso ao ajuste direto”;
2. “Acompanhamento da Contratação Pública abrangida pelas Medidas Especiais previstas na Lei n.º 30/2021”, Tribunal de Contas: “o risco [de fraude e de corrupção] aumenta quando os processos de formação dos contratos não são concorrenciais”;
3. Recomendações de 2015 e 2019 do Conselho de Prevenção da Corrupção sobre prevenção de riscos de corrupção na contratação pública;
4. Relatório anual de contratação pública em Portugal 2021, IMPIC: “o peso dos valores contratuais [de ajustes diretos] comunicados ao portal BASE representou 6,40% do PIB, que face ao ano anterior representa um acréscimo de 1,19 pp. Dos contratos celebrados durante o ano de 2021, o tipo de procedimento a que se recorreu com maior frequência foi o ajuste direto, representando 53,2% do número total de procedimentos”, e
5. A lista, não fosse tornar-se fastidiosa, podia continuar.
É facto unanimemente considerado que o recurso (excessivo e indevidamente justificado) a ajustes diretos na contratação pública constitui um risco sério de distorção da transparência administrativa, favorece a despesa pública desnecessária, alimenta os conflitos de interesses e carbura lentamente a ordem jurídica democrática.
Termino como comecei citando Sua Santidade o Papa Francisco: “Não sejam patrões clérigos de Estado, mas pastores do povo de Deus. Que a Igreja seja sempre lugar de misericórdia e esperança, onde cada um possa ser acolhido, amado e perdoado”.»
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