«Ir à Serafina sem ver as condições indignas de habitação, para este século e até para o anterior, de uma parte da população é como… “ir a Roma e não ver o Papa”. Na sua visita ao bairro que me viu crescer, o Papa Francisco foi vítima daquilo que denunciou: “A maquilhagem.” O que lhe foi dado a ver no seu trajeto de carro foi somente a parte superior do bairro, a que nós chamamos “bairro novo”, feito de vivendas, assim como a moderna Paróquia S. Vicente de Paulo, que é de facto uma instituição que colmata falhas do Estado em matéria de apoio social, saúde e educação.
Mas não foi só na Serafina que a aparência se revelou diferente da realidade, a maquilhagem foi uma constante nesta Jornada Mundial da Juventude, parecendo por vezes que estávamos a assistir a um filme com legendas erradas ou mal dobrado. Quando se ouviam palavras como humildade, igualdade e inclusão de “todos, todos, todos”, viam-se pessoas com bandeiras LGBTI+ a serem excluídas, viam-se palcos megalómanos, via-se hierarquia, viam-se homens de Igreja à frente ou acima, mulheres da Igreja atrás misturadas com o povo, povo este separado das zonas VIP para as quais se congratularam socialites no Instagram por terem sido convidadas.
Onde se ouvia separação do Estado e da Igreja, Constituição e democracia, viam-se políticos em bicos dos pés para aparecer na foto, via-se o Estado como patrocinador oficial do evento. Onde se ouvia paz e preocupação com o dinheiro investido em armas, viam-se a PSP e as Forças Armadas. Onde se ouvia recato e reserva, via-se uma performance voyeurista de numerosos confessionários públicos.
O evento foi um sucesso segundo a organização religioso-estatal, mas apesar da maquilhagem deixou a descoberto cicatrizes na democracia que importa não camuflar. O evento acabou, mas o mundo continua a girar, e pur si muove!, e existem transformações político-societais que precisamos de levar a sério. Os poderes religiosos não se coíbem de participar nessa transformação. Se não nos ocuparmos da religião, ela ocupa-se de nós. E exemplos disso é o que não falta no mundo, basta olhar para os EUA ou Itália e para os retrocessos a que estamos a assistir em matéria de direitos das mulheres e das pessoas LGBTI+.
Fosse a religião, e nomeadamente a católica, uma pura escolha privada, uma prática individual ou mesmo coletiva, mas sem incidência na polis, muito deste debate não seria necessário. Aliás, que debate? Não houve, nem há, debate. As poucas vozes que ousaram pôr em causa o discurso dominante e consensual, apontar as contradições como “não façais da casa de Meu Pai uma casa de negócio”, que ousaram lembrar o legado imoral da Igreja e a sua contribuição fundamental para a preservação de estruturas patriarcais, imperialistas e supremacistas ainda vigentes, foram desde logo castigadas. Foram submersas numa narrativa chantagista, difamatória e até humilhante, tendo sido acusadas de “intolerância religiosa”, de prática de “discurso de ódio”, de defesa de “extinção da fé” ou outras designações menos informadas de jacobinismo ou anticlericalismo.
Sem esquecer o ataque à liberdade de expressão de “artivistas” como Bordalo II e a falsa e problemática equivalência entre o apoio do Estado às artes e à religião, confundido um mundo de liberdade e de constante recriação com um mundo da autoridade, do dogma e das verdades eternas, esquecendo ainda a Constituição e as razões que levaram à essencial separação do Estado e das Igrejas.
Maquilhar o interlocutor de demónio é uma estratégia bastante eficaz de diversão e de silenciamento, e que permite a abstinência do incómodo do debate de fundo. Estamos longe da capacidade de diálogo do arcebispo Onaiyekan e da deputada conservadora britânica Ann Widdecombe face aos ateus militantes Hitchens e Fry, no célebre debate sobre a papel da Igreja católica no mundo, que vale a pena ver ou rever. Um dos únicos argumentos várias vezes repetidos às vozes críticas foi o exemplo do “Papa mais progressista”, confirmando assim, involuntariamente, os argumentos das vozes críticas.»
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