«Num momento em que se discute a sobrevivência do Serviço Nacional de Saúde (SNS), a discussão é encriptada com termos que a tornam fechada para o cidadão comum. Esta forma de linguagem é também uma maneira de não falar dos problemas de uma forma concreta. Lembra-nos o tempo em que a missa católica era toda em latim e e em que, depois da “missa nova”, de estreia, de um padre, diziam-lhe: "Falou muito bem".
Missa nova sem nada de novo. Só os acrónimos podem sugerir mudanças verdadeiras. Há duas realidades: centro de saúde e hospital. O resto é tudo linguagem técnica, tal como o “informatês” e o “economicês” e os termos de Medicina. Aposto que tudo isto pode ser "trocado por miúdos" e isso também faz parte da democracia.
Hospitais há-os de várias categorias. Os de topo caracterizam-se por terem todas as especialidades e estas estarem disponíveis durante as 24 horas do dia, com serviço de urgência permanente. São conhecidos quatro em Lisboa, repartindo a região metropolitana, incluindo os centros de saúde; um em Coimbra; e dois no Porto, com idênticas funções. Cabe perguntar se estão todos e preencher todos os requisitos e como. Atravessando os rios Tejo e Douro para a outra margem, idênticos hospitais cobrem o resto das respectivas regiões administrativas. Cobrem? E na periferia temos Castelo Branco, Évora e Faro com necessidades preenchidas?
Que unidades?
Quanto aos centros de saúde, os mais simples chamam-se Unidade de Centro de Saúde Personalizado (CS). Em 2005 iniciou-se o projecto de criação de Unidades de Saúde Familiar (USF) com os modelos A, B e C. O médico do CS, com a sua carteira de doentes, candidata-se ao modelo A, que é experimental, e continua a ganhar o mesmo. Aguardam-se mais do modelo B, com administração autónoma e remunerações do pessoal avaliadas pelo estado de saúde dos utentes. Cobrem 68% da população, que está muito satisfeita e os médicos têm remunerações decentes. O problema é dos outros 32%, dos quais 1600 nem sequer têm médico de família. Enorme desigualdade, que decorre há vários anos.
E quanto aos médicos, os últimos remunerados com dedicação plena são de 2011 (decreto-lei). O modelo C seria empresarial. Tanto os CS como as USF estão organizados, com direcção centralizada, em agrupamentos, que respondem perante as Administrações Regionais de Saúde. Até agora. De acordo com o novo estatuto, estas desaparecem ou quase e vão responder perante a Direcção Executiva do SNS e o CEO. Tudo percebido até aqui? Talvez. No entanto tudo mudará ou não de acordo com as promessas do Governo. A proposta é que todos os Cuidados Primários passem a USF modelo B. A felicidade para todos. Mas… Os critérios de remuneração não seriam os actuais. Discutem-se novos critérios. Aqui é que está o ponto. E o empate.
As propostas não param por aqui. Propõem novas Unidades Locais de Saúde (ULS). Implementadas em 1999, a primeira foi em Matosinhos, a última no Litoral Alentejano, em 2012. Proposta: juntar mais 31 às oito existentes. O modelo: organizar em conjunto um hospital e os CS da região. Começarão os dois hospitais centrais do Porto. Como exemplo, a ULS de Lisboa Norte seria constituída pelo Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (Hospital de Santa Maria e Hospital Pulido Valente), mais o Agrupamento Sete Rios que inclui CS e USF e ainda os CS de Mafra.
De acordo com os clínicos conhecedores dos Cuidados Primários, isto seria de decisão "hospitalocêntrica", sem direcção rotativa e sem disponibilidade técnica de meios auxiliares de diagnóstico, interna à unidade e que responda às urgências dos CS. Ao contrário, se os CS e USF actuais forem equipados com laboratórios, ecografias e outros exames, aliviarão muito as urgências hospitalares, porque há vários tipos de doentes agudos, muitos poderiam ser vistos nos centros. E os especialistas de Saúde Publica, perguntam, onde ficam? Deveria ser o princípio de tudo. Ocupar-se da prevenção das doenças sem declaração obrigatória, que são as mais prevalentes, vigilância dos factores que influenciam as doenças crónicas que vão dos 65 anos para cima, da eco-saúde, da relação com as autarquias.
Enfim, olhou-se para o mapa, fizeram-se geometrias variáveis, não se fez levantamento das características das populações respectivas (idades, situação social, habitação, transportes, patologias mais prevalentes), não se fez levantamento dos equipamentos e dos especialistas. É o tipo de projecto que qualquer empresa com ambições de rentabilidade rejeitaria, para entrar na linguagem da “Economia”.
Mas aqui o objectivo é a saúde dos cidadãos. E urgentes mesmo existem dois pontos, que não precisam de ser encriptados: salários decentes para os médicos, se os querem reter; e desenvolvimento de um Registo Clínico Único Electrónico na mão do cidadão, que vai sendo adiado, enquanto escorre o dinheiro do PRR em equipamentos e aplicações desemparelhados de um projecto racional.»
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