«Eu, o Presidente e ministro dos Estrangeiros vimos um pequeno cão vestido de bailarina em cima dos restos de um tanque russo. O pobre cão tremia de medo e isso era a única coisa confrangedora da cena, imediatamente fotografada por tudo o que era jornalista que estava perto. Compreende-se bem, a foto era engraçada e toda a gente que estava perto, nós e muitos ucranianos, sorriam da cena insólita. Mas como é habitual na máquina de má-língua e má-fé que são as “redes sociais”, a foto foi transformada numa afronta à Ucrânia, por parte dos radicais de direita que pululam nesse espaço e numa caracterização da guerra como ridícula por parte dos amigos dos russos que também frequentam em massa esses bas-fonds. Nada que não fosse esperado. Também eles tremem como o cãozinho.
Mas o cão-bailarina que serviu de pretexto estava lá muito bem, os nossos sorrisos os de muitos ucranianos mais do que adequados e na cidade, capital de um país em guerra, aquilo que mais do que tudo afecta os que querem a Federação Russa a marchar em Kiev, e provavelmente a matar o cãozinho, é que as pessoas comuns que nos rodeavam mostravam a sua resiliência, tentando viver na normalidade. Estava muito bom tempo, havia milhares de pessoas nas ruas, muitos jovens, particularmente raparigas, porque os rapazes estão na guerra, famílias que passeavam no que verdadeiramente incomoda muitos — o tanque.
Se alargássemos a cena para além do ucraniano cão, encontrávamos uma longa fila de material russo ou destruído ou abandonado, tanques, artilharia pesada, veículos blindados, com muitas dezenas de artefactos de guerra, carbonizados, perfurados, com as lagartas fora das rodas, com as torres decepadas e com os canos dos canhões fora do sítio a morder o chão da rua, cada um mostrando a morte horrível de quem lá estava dentro. Noutros casos estavam intactos a fazer de par das centenas de botas dos soldados russos, que ou fugiram ou morreram ou foram capturados. É assim a guerra.
Voltando ao contexto, se alargássemos o campo de visão para além do cão-bailarino, estavam milhares de pequenas bandeirolas azuis, ucranianas, amarelas do Batalhão de Azov, canadianas, americanas, georgianas, enchendo um gigantesco canteiro. Cada bandeira tem um nome, o de um militar ou civil morto na guerra que os russos e Putin levaram à Ucrânia. Numa cidade que nesse dia, entre sirenes de alarme que levavam toda a gente para os abrigos, podia parecer uma grande capital europeia — a praça era a célebre Praça Maidan, — o desejo de normalidade era apenas contrariado pelas bandeiras e pelos retratos nas paredes dos mortos.
Em Londres, nos momentos mais duros do ataque aéreo alemão, a população fazia o mesmo. Mordia a sua raiva, procurava os mortos nos escombros dos bombardeamentos, entrava e saía dos abrigos, mas fazia o enorme esforço de normalidade que é um dos factores mais relevantes para o moral num combate contra um inimigo reconhecido, identificado e naturalmente odiado. Sim, odiado. Numa guerra como a da Ucrânia, onde um país que pode e tinha todos os defeitos foi invadido por um dos mais poderosos exércitos do mundo, arrogante na sua incompetência, virada para esmagar tudo à sua frente, a começar pelos civis, destruindo as suas casas, tentando privá-los de electricidade e de gás em pleno Inverno, massacrando-os como em Bucha, e matando os seu homens e mulheres com farda, o que é que se espera: ódio, muito ódio.
Aliás, quando se visita uma frente, a maioria das casas que se vê destruídas são casas de gente pobre, assim como os espaços de recreio e escolas, muitas vezes nos bairros dos arredores ou em aldeias, não são opulentas mansões. Mesmo que se aceite as mil e uma explicações dos russos — que, aliás, nem sequer se dão ao trabalho de justificar o que fazem com pretextos militares —, é muito difícil imaginar que naquelas casas estivesse artilharia ou snipers, naquelas aldeias por detrás de cada casa destruída um pelotão de infantaria, ou um posto de observação das secretas militares. Talvez num ou outro caso isso seja verdade, mas só que as casas destruídas são muitas centenas, ou seja, foram alvos por si próprias para correr com as populações, mostrar que não vale a pena resistir ao Exército que varreu os alemães da Europa. Só que nem é esse Exército que lá está, até porque muitos combatentes neste pseudo-argumento estão também do lado de cá, dos muito milhões de ucranianos que morreram na Grande Guerra Patriótica.
O cãozinho podia estar a tremer ao ver tanta gente à sua volta, mas saberia certamente distinguir entre os seus amigos e os seus inimigos. Se estivessem russos à sua frente, ele olharia para as bandeiras dos mortos, segurar-se-ia nas lagartas do tanque destruído e atirar-se-ia para morder o invasor. O cão é ucraniano, é um patriota.»
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