«Provavelmente já leu a notícia. Provavelmente já esteve a beber café, de manhã bem cedo, ao lado de alguém curvado num balcão a raspar um bocado de cartão à procura do sonho, ou de metade dele, ou de um quarto, ou de qualquer coisa, nem que seja apenas recuperar o valor apostado. Quando a sorte não sai, segue-se outro shot de dopamina. Os movimentos repetem-se, tal como um hamster a correr numa roda satisfazendo o seu instinto de sobrevivência. “Dê-me outra, desde que tenha prémio”.
Mas o que diz a notícia que resulta de um estudo elaborado pela Universidade do Minho para o Conselho Económico e Social? São 100 mil os adultos portugueses que têm problemas de jogo com as raspadinhas. Destes, 30 mil apresentam perturbação de jogo patológico. São os mais pobres - aqueles que auferem rendimentos mensais entre os 400 euros e 664 euros - que jogam mais. E também os mais velhos. Frequentemente têm mais de 66 anos.
Podemos fazer as leituras que quisermos. Mas, na verdade, o que o estudo “Quem paga a Raspadinha?” nos oferece é também um bom retrato do país. Não somos só fado, nem bacalhau, nem caldo-verde, nem Cristiano Ronaldo. Também somos raspadinhas, mesmo que não fique bem na fotografia.
Em março, um psicólogo foi ao cerne da questão. “Para perceber o desespero dos que jogam, temos de perceber o desespero com que vivem no dia a dia”, frisou Rui Alves, a um jornal universitário.
Este desespero não pode ser confundido com vício. Nem com as receitas da Santa Casa ou com os impostos arrecadados pela Segurança Social para fins de ação social. Em 2021, os portugueses gastaram 4,1 milhões de euros por dia em raspadinhas.
É um retrato de um país pobre e desesperado. Adornado com migalhas para adiar o pagamento da casa, como as que o Governo atirou ontem aos portugueses que têm crédito à habitação. Portugal é um país de trabalhadores. É o sexto na Europa onde a semana de trabalho é mais longa. E de sonhos eternos, nem que seja a raspar.»
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