«Já não é a primeira vez que falo disso, e se calhar não será a última, mas o grau de agressividade pessoal nas cidades, em particular em Lisboa, está cada vez maior. O incremento é significativo, tanto mais que está em aparente relação inversa com a agressividade colectiva, aquela que se manifesta algumas vezes nos movimentos sociais. As greves e as manifestações são pacíficas, e, mesmo quando os discípulos da Extinction Rebellion se prendem a uma grade ou bloqueiam uma rua, é mais um acto simbólico do que qualquer “resistência séria”.
É uma comparação imperfeita, mas mesmo assim possível. Na verdade, se a primeira forma de agressividade pode ser testemunhada por todos, a segunda existe latente, escondida, difusa, embora como uma mancha cada vez mais vasta. A primeira forma de agressividade está em alta, em pico, a segunda espalha-se mais em mancha, manifesta-se através de comportamentos menos evidentes, mas que estão lá. Talvez o melhor exemplo seja o racismo, cuja mancha se espalha para lá dos alvos tradicionais, para os imigrantes asiáticos e latino-americanos.
Explico-me quanto à agressividade individual em alta. Ela está por todo o lado e não tenho dúvida de que a violência doméstica é o seu melhor exemplo. Mas não é o mais público. A rua, o trânsito, pode parecer pouco relevante como sinal de agressividade, mas não é. O espaço público urbano torna-se muito pouco habitável, resultado de um conjunto de factos que implica ideias erradas, opções urbanas erradas, medo de actuar, muita impotência, e interesses muito poderosos em nome da “mobilidade”. O monstro cresceu à nossa porta e agora parece indomável.
O caos em que se tornaram as ruas da cidade, sem lei, nem ordem, com milhares de pessoas que não cumprem qualquer regra, trotinetas, bicicletas que circulam em sentido contrário, que passam sinais vermelhos, tuk-tuks que entopem o trânsito, motos que aparecem por todo o lado e passam entre os carros, TVDE que param em qualquer sítio com desprezo pelas filas que provocam, os milhares de transportes de comida, os passeios ocupados com carros, motos, bicicletas e trotinetas (deve ser cada vez mais difícil ser cego e andar na rua), os veículos comerciais que não cumprem horários, etc., etc. Os automobilistas parecem ser a principal vítima, embora o “carro individual” tenha má imprensa, mas o mesmo se passa com transportes públicos, peões e as vítimas inocentes apanhadas em acidentes.
O número de pessoas que em bicicletas e trotinetas se deslocam sem qualquer protecção, duas em cada trotineta, com crianças dependuradas, à frente e atrás, ao meio, numa completa irresponsabilidade dos pais, que fazem slalom a considerável velocidade, aumenta o risco de acidentes e o número de acidentes em que aparecem sempre como vítimas, porque são mais fracos do que os carros. Basta atravessar a cidade para ver como cada vez mais se buzina ao mais pequeno atraso num semáforo e como cenas de insultos e ameaças são cada vez mais comuns. É igualmente verdade que se conduz a ver o telemóvel ou a mandar mensagens. Tudo junto, alimenta o caos.
É suposto as leis e os regulamentos mitigarem a desordem e imporem regras, mas não me venham com histórias da carochinha. É muito maior a probabilidade de alguém ser multado por mau estacionamento do que uma trotineta a voar pelos passeios e a atravessar vermelhos, ou um TVDE ser posto na ordem por parar em qualquer lado, coisa que pelos vistos podem fazer. Já para não falar nessa multidão explorada por uma miséria com uma caixa de comida às costas que tem de entregar depressa para ir buscar mais e que precisa de violar as regras todas para ganhar… nada.
A verdade é que, de uma ponta à outra da nebulosa do trânsito, que é o modo como centenas de milhares de pessoas vivem o seu dia-a-dia, nem que seja de casa para o emprego, para deixar os filhos na escola, para irem ao supermercado, para trabalharem, não há lei nem ordem. Colocados perante a realidade de defrontarem a todos os momentos a lei do mais forte, do mais esperto, do mais hábil, do mais jovem, do mais violento, a resposta é agressiva, ou para fora ou engolindo para dentro. Numa altura em que muito pouca gente tem razões para estar feliz, com tudo mais caro, com pouco dinheiro, com a casa precária, com os filhos a fazerem asneiras, com os pais a fazerem asneiras, sem terem o que querem e gostam, dependentes da “raspadinha”, demasiado presos à “alegria” dos pobres, a telenovela, o futebol e o Big Brother, o que é que se espera? Civismo, boa educação, tretas!
Além disso, vem aí a chuva e o Inverno.»
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