14.9.23

Um pequeno absurdo

 



Dai-nos, meu Deus, um pequeno absurdo quotidiano que seja,

que o absurdo, mesmo em curtas doses,

defende da melancolia e nós somos tão propensos a ela!

Se é verdade o aforismo faca afia faca

(não sabemos falar senão figuradamente

sinal de que somos pouco capazes de abstracção).

Se faca afia faca,

então que a faca do absurdo

venha afiar a faca da nossa embotada vontade,

venha instalar-se sobre a lâmina do inesperado

e o dia a dia será nosso e diferente.

Aflições? Teremos muitas não haja dúvida.

Mas tudo será melhor que este dia a dia.

Os povos felizes não têm história, diz outro aforismo.

Mas nós não queremos ser um povo feliz.

Para isso bastam os suíços, os suecos, que sei eu?

Bom proveito lhes faça!

Nós queremos a maleita do suíno,

a noiva que vê fugir o noivo,

a mulher que vê fugir o marido,

o órfão que é entregue à caridade pública,

o doente de hospital ainda mais miserável que o hospital

onde está a tremer, a um canto, e ainda ninguém lhe ligou

nenhuma. Nós queremos ser o aleijado nas ruas, a pedir esmola, a

a bardalhar-se frente aos nossos olhos. Queremos ser o pai

desempregado que não sabe que Natal há-de dar aos seus.

Garanti-nos, meu Deus, um pequeno absurdo cada dia.

Um pequeno absurdo às vezes chega para salvar.

Alexandre O'Neill 
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