«1. Apesar da guerra na Europa, as heróicas mulheres do Irão não têm sido esquecidas. A imprensa ocidental não as esquece. As redes sociais também não. Os responsáveis políticos europeus e norte-americanos talvez se preocupem mais com o fornecimento de drones à Rússia pelo regime teocrático de Teerão. O júri do Prémio Nobel da Paz lembrou-se delas. Escolheu uma delas, fechada nos calabouços do regime e condenada a um somatório de 31 anos de prisão, mais a 154 chibatadas por ofensas como ter escrito uma carta ao secretário-geral da ONU – dispensam-se mais palavras para descrever a natureza do regime dos mullahs –, que fez do combate pelos direitos humanos e pela democracia a sua vida e que é hoje um dos rostos da luta das mulheres iranianas pela liberdade. Desde 16 Setembro de 2022, o dia em que Mahsa Amini, uma jovem de 22 anos, morreu depois de entrar em coma numa esquadra da polícia onde estava por ter o véu (hijab) mal posto, que a luta das mulheres iranianas não mais parou. Conta-se hoje em centenas de vítimas mortais e milhares de prisões.
2. É sempre difícil medir o sofrimento causado pela repressão, como é impossível medir a coragem dos que lutam contra ela. É ainda mais difícil a uma mulher europeia imaginar o que é viver sob um regime que fez da submissão das mulheres um dos seus principais instrumentos de poder. Mas tudo se torna mais fácil quando essa luta escolhe como símbolo os cabelos que as iranianas se sentem no direito de exibir livremente, num gesto que fere no seu âmago a ideologia reaccionária dos seus opressores.
A revista Time elegeu-as as “heroínas” de 2022. Na capa do número especial de Dezembro que se dedica aos protagonistas do ano que acaba, figuram três mulheres iranianas, de costas voltadas, que se abraçam, exibindo apenas os seus cabelos destapados. Zelensky foi a personalidade do ano. Elas foram as heroínas.
3. A sua luta contra o regime teocrático não começou agora. Desde 2010 que as mais corajosas se reúnem através da Internet para organizar manifestações tantas vezes solitárias contra os ayatollahs. Começaram com a “Campanha Branca das Quartas-Feiras”, que atingiu o seu clímax quando Vida Movahed, empoleirada numa caixa de cartão na Rua da Revolução, em Teerão, retirou o seu hijab branco, o colocou no extremo de uma vara e acenou com ele à multidão. Foi presa. O vídeo do seu gesto de desobediência tornou-se viral. Nos meses seguintes, foi repetido por muitas outras mulheres, que ficaram conhecidas como “as raparigas da Rua da Revolução”. Pouco tempo depois, em Setembro de 2017, a jornalista Masih Alinejad lançou a campanha “A minha câmara fotográfica é a minha arma”, com a publicação nas redes sociais de vídeos da violência que sofriam às mãos da “polícia da moralidade”, quando não usavam o véu islâmico. O movimento que eclodiu em Setembro de 2022 tem, portanto, uma história. A diferença é que se tornou imparável, mobilizou milhões em todas as cidades do Irão, ganhou lugar nos media internacionais. Nunca mais deu descanso aos ayatollahs. O Prémio Nobel da Paz é mais um alento, talvez inestimável. E uma condenação internacional do regime.
4. No dia 8 de Setembro, para assinalar um ano desde a morte trágica de Mahsa Amini, o Le Monde publicou as cartas de cinco mulheres que estiveram ou estão ainda na prisão de Evin, a norte de Teerão, entre elas, Narges Mohammadi. “No Irão, cada indivíduo, em cada momento da sua vida e em cada lugar, é culpado do desejo de viver. Incorre, por este crime, nas piores sanções.” A carta começa assim: “O meu propósito é dar um rosto aos seres humanos que, um pouco por todo o mundo, estão encerrados numa prisão, quer estejam rodeados por muros de aço ou pelos muros da opressão, mas que, contra tudo e contra todos, aspiram a derrubar esses ‘muros’: os da ignorância, da exploração, da pobreza, da privação e do isolamento.”
Narges Mohammadi, 51 anos, mãe de família, é vice-presidente do Centro dos Defensores dos Direitos Humanos, dirigido pela advogada Shirin Ebadi, que recebeu, também ela, o Prémio Nobel da Paz, em 2003 – a primeira mulher do mundo islâmico a recebê-lo. Foi uma das primeiras juízas iranianas, demitida depois da tomada de poder pelos ayatollahs, em 1979. Abriu um escritório privado para defender presos políticos. O júri do Prémio justiçou a sua escolha com o desejo de reduzir a tensão entre o mundo islâmico e os Estados Unidos, na sequência do 11 de Setembro. Na altura, havia ainda a esperança numa evolução reformista do regime. Vinte anos depois, essa esperança deixou de existir.»
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