«Muitos têm dito, com razão, que Israel tem direito a defender-se. É um direito universal de todos os povos. Mas raramente se faz a pergunta ao contrário: os palestinianos têm direito a defender-se? A pergunta não é sobre o Hamas. É sobre os milhões de palestinianos que têm estado fora de todos os discursos. E ela está longe de ser retórica para quem vive sob ocupação na Cisjordânia e totalmente isolado do mundo em Gaza (e agora bombardeado de forma indiscriminada). São vítimas de um ataque quotidiano, da limitação severa de direitos elementares e da total recusa do seu direito à autodeterminação.
Poderia fazer aqui a descrição do inferno quotidiano nos territórios ocupados, a que assisti, ou do que vi e senti em Gaza. Mas tenho tentado deixar de lado a emoção num tema que me emociona muitíssimo. Acho que no meio da tragédia e da polarização, apelar à racionalidade não é apelar ao cinismo. É apelar ao que tem faltado.
Voltando à pergunta: os palestinianos têm direito a defender-se? Da mesma forma que só consigo debater com quem conceda esse direito aos israelitas, só consigo debater com quem o aceite para os palestinianos. A pergunta que interessa é, então, como se podem ou devem defender.
Pela via política e diplomática? É o que a Autoridade Palestiniana faz há décadas, desde que abdicou da violência que Israel nunca abandonou, já que a exerce sem interrupção no quotidiano dos palestinianos. A razão da impopularidade de Mahmoud Abbas entre os palestinianos é essa. Não porque que aqueles que eram a elite cultural do mundo árabe, os mais tolerantes e cosmopolitas entre os muçulmanos, sejam naturalmente violentos. Mas porque o resultado foi a perda constante de território, o endurecimento da repressão israelita, a expansão imparável dos colonatos em terras legalmente palestinianas e a radicalização do governo de Israel. O que os palestinianos veem é que esta via só lhes ofereceu derrotas. Aquilo a que Netanyahu chama de “paz” e que Putin sonha ver na Ucrânia.
Há a via da resistência pacífica. Foi de alguma forma tentada na Grande Marcha do Retorno, em Gaza, com soldados israelitas a abater quem se dirigia à fronteira. Mas o apoio incondicional (é sempre uma péssima forma de apoiar) ao ocupante tornou o ocidente totalmente insensível à perda de vidas palestinianas. O sacrifício pacifico está condenado à invisibilidade e à indiferença. Como se vê pela fila de líderes ocidentais a querer cumprimentar Netanyahu enquanto ele comete crimes de guerra. Deste lado, só mesmo António Guterres e o Papa Francisco querem saber das vidas palestinianas.
Há a via militar, que é a legitimamente usada pelos Estados quando são agredidos ou ocupados. Só que a Palestina não teve direito a um exército formal. E mesmo que o tivesse, o apoio que Israel recebe dos EUA chegaria para esmaga-lo em horas numa guerra convencional. Restaria o apoio de outros países árabes, que levaria à generalização da guerra, que ninguém deseja.
Assim, a resposta só pode ser política. Não há, no contexto interno israelita, qualquer vontade de a tentar. Nem qualquer razão, na verdade. Mesmo que o caminho oposto represente a perda de algumas vidas inocentes, que fanáticos como Netanyahu veem como um preço a pagar, tem permitido canalizar os apoios dos palestinianos para grupos de terroristas com quem não se tem de negociar, expandir território e manter intactos os apoios internacionais, conseguindo até a traição das ditaduras árabes, que não têm de prestar contas aos seus povos.
A solução está nas mãos dos aliados de Israel, a começar pelos Estados Unidos. Até hoje, o único que teve a coragem de condenar o que chamou “apartheid” foi Jimmy Carter, lamentando o abandono da solução dos dois Estados. Apesar de ter negociado a paz entre Israel e o Egito, foi acusado de antissemitismo, obviamente.
Os aliados de Israel têm de obriga-lo a sentar-se à mesa com a Autoridade Palestiniana, a única entidade moderada que resta nesta neste conflito. O objetivo é, antes de tudo, o de fazê-lo respeitar o direito internacional e os acordos celebrados, negociando a retirada dos territórios ocupados e desmantelando os colonatos ilegais. Depois, começar uma negociação difícil sobre o estatuto de Jerusalém e trabalhar em medidas de segurança conjuntas, que não correspondam à cultura colonial instituída. Só isto pode transformar um Hamas num inimigo comum de israelitas e palestinianos. Até lá, a paz será impossível. Porque nenhum povo aceita ser vítima para sempre. Os judeus não aceitaram, felizmente. Os palestinianos não aceitarão.
A total ausência de critérios morais, que leva a que se aceite que Israel faça o que a lei não permite a qualquer outro Estado, que esteja acima do direito internacional e de todas as resoluções da ONU, também tem um preço, em segurança, para a Europa. Por isso, este conflito não precisa de aliados incondicionais, precisa de mediadores. E de partes para conversar. Do lado palestiniano, há o poder reconhecido, enfraquecido por três décadas de derrotas e desprezo geral. Do lado israelita, é preciso substituir por um líder um desqualificado que vê na carnificina a última oportunidade de não acabar preso.
Só assim não veremos o povo da Cisjordânia a gritar pelo Hamas. Os palestinianos não podem estar condenados a escolher entre a extinção e a barbárie.»
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