28.10.23

O direito ao “mas, porém, todavia, contudo”

 


«Eu não coloco nenhum “mas” no massacre do Hamas, mas coloco na resposta israelita, que é uma coisa interligada, mas distinta. Esta é, aliás, a posição que toda a gente sensata e moderada tem tomado, incluindo muitos israelitas que conhecem o Governo Netanyahu melhor do que nós e sabem muito bem o que eles são e o que querem, os americanos e Biden. Uma coisa é o plano moral da condenação do que fez o Hamas, e isso é a preto e branco, só que, se o Governo israelita cometer crimes de guerra, o mesmo plano moral aplica-se, sem um diminuir o outro.

Porém, há hoje um ambiente de radicalização — de que falarei vezes sem conta porque ele está por todo o lado nas democracias, e é nas democracias que ele é mais perigoso —, que acha que ou nos arregimentamos calados, cegos e surdos num lado ou pertencemos ao Exército adversário. E daí nasce uma falência da política, mas também da ética, quando não se pode falar das fragilidades do lado que escolhemos como nosso, sem isso pôr em causa a condenação total e absoluta dos massacres do Hamas. É suposto ser assim quando se vive em democracia e se actua em liberdade, ou isso já não conta nos dias de hoje? E o direito também só se aplica quando é útil? E os crimes são objectivos, ou são ou não são conforme quem os pratica?

Todavia, o que se está a passar é o incremento da censura. Veja-se o caso da declaração de Guterres. O problema com essa declaração é que colocou o “mas” no sítio errado, mas, sejamos justos, o conjunto da declaração condena em termos claros o ataque do Hamas. Mas o que provocou a fúria dos israelitas “oficiais” é o chamar a atenção para a situação de ocupação da Palestina nos termos das resoluções da ONU, e as violências cometidas na faixa de Gaza, não a ambiguidade com o Hamas. O que está a acontecer nos dias de hoje é que o Governo israelita — e é necessário fazer esta distinção, entre Israel, os judeus, e o Governo de Netanyahu — tem uma história negra de violação dos direitos reconhecidos internacionalmente aos palestinianos, em particular da Cisjordânia, incentiva colonatos ilegais e cauciona os ataques que os colonos fazem contra os palestinianos que têm a casa e a família nos terrenos de expansão dos colonatos.

Contudo, o que o Governo israelita quer é que, a pretexto da condenação do Hamas, se dê uma caução à sua política de antes e de agora, que está presente na resposta ao Hamas na faixa de Gaza, de violências sobre os civis muito para além dos terríveis “danos colaterais” inevitáveis na resposta militar, e justificados pela necessidade de punir o Hamas. É que o modo como está a ser feita a resposta, que tem claramente como um dos alvos a população civil de Gaza para além do Hamas, é muito mais coerente com a política rácica, de expulsão dos palestinianos, de retirada de direitos à Autoridade Palestiniana e aos palestinianos que são cidadãos israelitas, e de total violação da integridade daquilo que seria um Estado palestiniano, conforme todas as resoluções da ONU e os acordos assinados por Israel, e isso vai muito para além da justa resposta ao Hamas e de defesa de Israel.

Porém, esta radicalização tem como efeito gerar um surto de polícias do pensamento e de denunciantes, e a bufaria está por todo o lado nas redes sociais. A mistura de agressividade (na resposta a Guterres), de censura e cancelamento como aconteceu com Paddy Cosgrave, que se limitou a dizer o óbvio, de que crimes de guerra são crimes de guerra seja quem for que os pratique, ou as campanhas de censura e imbecilidade na cloaca das redes sociais, como a que fez Greta Thunberg ter de tirar o polvo de peluche de cima do sofá, que não tinha obviamente qualquer significado anti-semita. Aliás, pôr animais nos vídeos ou por perto é péssimo: polvos, ratos, macacos, gatos, cães, peixes, pandas, caracóis, gafanhotos, lesmas, por aí adiante, é perigoso. Veja-se os gatos. Coloquem um gatinho muito giro e fofo — nem acredito que estou a usar estas palavras — e eu posso dizer que é um anarquista em acto ou em potência, porque há-de haver momentos em que esse gatinho embravece porque o colocaram no Tik-tok sem respeito pelos seus direitos de personalidade e passa ao “gato vadio”, que os anarquistas gostam de usar no nome das livrarias, publicações ou panfletos.

No entanto, como hoje quem vive do favor dos media, ou quem precisa dos seus grandes empregos politicamente correctos, tem uma espinha dorsal dobrável, os pedidos de desculpa são muito piores do que as ambiguidades, quando existem, nas declarações iniciais. E lá se foi o polvinho de peluche, que podia ser anticapitalista, denunciar os tentáculos de um ditador, ou prever os resultados dos jogos de futebol, mas que, aos olhos dos censores, tinha de ser anti-semita. Isto está bonito…

Mesmo assim, contudo, no entanto, apesar, não obstante, não contem comigo para não usar as adversativas, que são, no plano da racionalidade e da análise, boas palavras.»

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2 comments:

Marina disse...

Nem mais.

António Alves Barros Lopes disse...

Os acontecimentos de 7 de Outubro foram uma tragédia!
No entanto muitos comentadores e outros explicadores, não reparam que o 7 de Outubro é um marco de chegada.
E depois tudo justificam como se a História tivesse começado alí!
São aqueles mesmos que pensam que o mundo apareceu quando nasceram!