1.10.23

Preços da habitação: já ninguém aguenta mais e o futuro do Governo joga-se aqui

 


«As manifestações deste sábado foram um sinal do que, na realidade, já se sabia: a crise da habitação atingiu o limite do suportável.

Não há nenhuma conversa entre pessoas normais que não seja sobre a impossibilidade de arranjar uma casa a um preço que os salários nacionais possam pagar. A bolha explodiu e o assunto é demasiado grave para que o PS e o Governo continuem a sustentar um discurso recheado de optimismo delirante, como fez António Costa na rentrée do PS.

O pacote “Mais Habitação” é manifestamente pouco. A forma como o PS decidiu ignorar todos os alertas de Marcelo Rebelo de Sousa — uma atitude só explicada pela presente tensão entre Presidente e Governo — e todas as propostas da oposição mostra também que nesta matéria se chegou àquele ponto em que chegam todos os governos que estão há muito tempo no poder. É habitual chamar-lhe “arrogância”, mas consiste em ignorar a rua.

É sempre bom lembrar os exemplos históricos, porque em política a história repete-se muito mais vezes do que julgamos. O cavaquismo “acabou” quando o Governo decidiu acabar com o feriado da terça-feira de Carnaval (uma arrogância inexplicável) e aumentar as portagens na Ponte 25 de Abril, dando origem ao bloqueio.

A loucura que se atingiu com a habitação pode ser, para António Costa, o que foi o bloqueio da ponte para Cavaco Silva. Já escrevi noutro texto como fiquei boquiaberta ao ver o primeiro-ministro gabar-se do seu enorme sucesso com as políticas de habitação.

O problema não é só português, é europeu. Segundo os dados do Eurostat, o investimento em 2021 em Portugal em habitação foi igual ao da Hungria (3,9%), longe da República Checa (4,7%) e muito distante de Chipre, Alemanha, Finlândia ou França (7,6% no primeiro e 7% nos restantes). Quanto ao investimento público, Portugal está na cauda da Europa, ainda que o Orçamento de 2023 tenha feito subir a percentagem em 65%.

Mas o facto de o Plano de Recuperação e Resiliência ser, na realidade, a verdadeira alavanca para a construção mostra como antes da covid o dossier não foi prioridade. Na mensagem ao Parlamento, a acompanhar o veto, Marcelo disse uma coisa de esquerda ou, pelo menos, genuinamente social-democrata: “Salvo de forma limitada, e com fundos europeus, o Estado não vai assumir responsabilidade directa na construção de habitação.” É bastante penoso que um ciclo político que começou com um acordo PS-PCP-Bloco de Esquerda não tenha colocado a questão da habitação nos acordos de 2015. É verdade que em 2015 a crise não era tão dramática como é hoje, mas a famosa “lei Cristas” estava em vigor praticamente sem mexidas.

Este deslaçar do tecido social — que a isenção de impostos e facilidades aos especuladores fez disparar, vulgo “vistos gold” — pode aumentar as tendências xenófobas na sociedade portuguesa.

Há um certo discurso antiturismo demasiadamente parecido com o discurso anti-imigrantes para poder ser ignorado. A presença do Chega na manifestação é o sinal óbvio: o partido sabe como as duas coisas — o ódio ao estrangeiro que vem “roubar” as nossas coisas — se podem misturar. A esquerda tem de saber fazer melhor.

A situação da habitação chegou ao limite e estende-se a quase todo o país. Mas nunca é demais lembrar que há uns anos no Rossio, em Lisboa, vivia “uma” pessoa. A Baixa estava a cair aos bocados e era assustadora à noite para quem andava sozinho. O turismo contribuiu para a riqueza nacional e para o emprego de uma forma decisiva.

A ideia de uma Lisboa perfeita cheia de lisboetas — nunca foi — é falsa e é bastante parecida com aquelas crónicas bacocas sobre um Algarve idílico sem turistas, no tempo em que só os ricos faziam férias.

Agora, é urgente um equilíbrio que não existiu nas políticas públicas e que faz com que, neste momento, as pessoas estejam bastante pior, mesmo que as contas do país estejam melhor, na imortal frase de Luís Montenegro do tempo da troika.

O futuro eleitoral do PS joga-se aqui (pelo menos esta é uma linguagem que António Costa compreende).»

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