17.11.23

A urgência do recurso de amparo

 


«As comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, no próximo ano, e dos 50 anos da Constituição em 2025, ganharam uma importância que vai além do mero simbolismo. Com o regime democrático, o imperativo da domesticação dos poderes, sobretudo dos poderes públicos, pelo Direito foi resgatado. Com a Constituição de 1976 reconheceu-se a vinculação do Estado à garantia, defesa e respeito pelos direitos fundamentais das pessoas.

Durante uma semana assistimos ao desprezo de garantias e direitos fundamentais de qualquer pessoa, mesmo que essa pessoa exerça funções políticas. Cinco cidadãos estiveram detidos, fora de flagrante delito, durante seis dias, sem que nada indique que se tenham recusado a participar em diligência para a qual tenham sido convocados. No dia da detenção, o Ministério Público levou a cabo diversas diligências com a espetacularidade que lhe é muitas vezes conhecida, suscitando intensa comoção social: 17 buscas domiciliárias, cinco buscas em escritório e domicílio de advogado, 20 buscas não domiciliárias, incluindo na residência oficial do primeiro-ministro, no Ministério do Ambiente e na Secretaria de Estado da Energia.

Durante esse período, assistiram-se a violações do segredo de justiça, com fugas estratégicas de informação relativamente não só ao que constava dos autos e da indiciação mas também ao que teria sido encontrado nessas buscas. Revelaram-se pormenores totalmente alheios aos interesses da investigação em curso, mas que atingiram fatalmente a intimidade, o bom-nome e a reputação dos arguidos.

É verdade que este caso reveste um especial interesse público, pois envolve protagonistas políticos, figuras publicamente próximas do primeiro-ministro e, potencialmente, o próprio primeiro-ministro. Mas nenhuma destas pessoas se pode ver, por essas circunstâncias, privada dos seus direitos fundamentais. Mantêm o seu direito à privacidade e à presunção de inocência, limites absolutos à atuação não só do Estado mas também dos jornalistas, no exercício das liberdades constitucionais de informação e de expressão.

A situação produziu consequências indeléveis na vida destas pessoas e das suas famílias. A desproporção da sua detenção, face aos indícios que quase quatro anos de inquérito produziram, e às medidas de coação aplicadas, salta à vista. É certo que a decisão do juiz de instrução criminal será ainda objeto de reapreciação judicial. E que o poder judicial, consubstanciado nessa mesma decisão, se mostrou imperturbável perante o circo mediático, comprovando que a sua independência é um elemento precioso do Estado de direito português. Recorde-se que essa independência, marca de água do rule of law, é também uma conquista de Abril, que temos obrigação de proteger.

Mas há insuficiências que persistem. Apesar das conquistas em matéria de direitos fundamentais, estes valores conhecem, demasiadas vezes, difícil tradução nos processos judiciais concretos. Acusamos um défice acentuado de meios formais para reagir a violações de direitos fundamentais. O défice mais notório é a ausência de um recurso de amparo que permite a apreciação judicial, em regra pelo Tribunal Constitucional, de violações efetivas de direitos fundamentais por atos do poder público.

No processo de revisão constitucional em curso verificou-se, pela primeira vez, que a criação deste mecanismo integrava os projetos de vários partidos em simultâneo (PSD, IL e PCP). Havia alguns sinais positivos relativamente ao potencial acordo do PS, cuja aprovação seria imprescindível. Perdeu-se uma oportunidade ímpar para, finalmente, preencher este défice no nosso quadro constitucional. Muitos dos atropelos às garantias constitucionais em processo criminal só serão suficientemente reprimidos com um mecanismo deste tipo, que permita ao Tribunal Constitucional sancionar devidamente desvirtuações desses e de outros valores básicos.

O processo atual suscitará reflexões imprescindíveis em matéria de reforma da Justiça. Na minha opinião, essa reforma deve começar por aqui.»

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