Arquivo Ephemera
«1. Afirmei e reafirmo que, se o que se encontra nas escutas telefónicas de uma “operação” chamada “influencer” – sinal de que os nossos agentes da Justiça vêem aqueles programas de absoluto vazio onde umas meninas e uns senhores fazem umas fitas no Tik-Tok para se venderem, em primeiro lugar a si próprios/as, e depois roupa e bugigangas – merecesse prisão, então todos os governantes, todos os autarcas, desde a estabilização da democracia estariam na cadeia.
2. É tráfico de influências no significado vulgar do termo? É, sem dúvida: A, por encomenda de B, dirige-se a C que conhece e pede-lhe um favor, muitas vezes sem nada de ilegal, e participa num jantar de luxo ou recebe uma avença pelos seus serviços em geral, move de facto “influência”. É uma prática tão comum que muito pouca coisa funciona sem esse sistema. É mau? É, principalmente, porque este tipo de promiscuidade pode abrir caminho à corrupção, mas, pelos vistos, no caso actual não existe até hoje qualquer sinal de corrupção. É mau, porque significa que não há mecanismos capazes e céleres para resolver muitos “problemas” de um Estado que, de cima a baixo, tem uma burocracia ineficiente e incompetente, que permite nos seus interstícios este sistema de favores e “cunhas”. Mas isto não é novo na democracia portuguesa e, em si, pode ajudar a agilizar o que é moroso e poupar dinheiro e recursos que se pagariam ou se estragariam de outro modo. Não é em si evitável na actual situação, mas tem perigos e riscos.
3. Claro que as “cunhas” e os favores, são como tudo numa sociedade em que alguns mandam e outros são desprovidos de qualquer poder, desiguais e muito injustos. Veja-se como as “cunhas” dos ricos, aquelas que este processo retrata, usam meios poderosos, no qual avultam as consultoras e os grandes escritórios de advogados de negócios. O que faz o sucesso dos grandes escritórios de advogados, sempre os mesmos, é o acesso ao poder. Eles conhecem muito bem as pessoas, os caminhos, as vantagens e dificuldades. Num certo sentido, eles são os “melhores amigos” de ministérios, secretarias de Estado, autarquias, chefes de gabinete, directores-gerais, entidades reguladoras, toda a gente que conta. Conhecem-nos pessoalmente, têm os seus números de telefone pessoais, sabem com quem devem falar para “desbloquear” um “problema” e fazem-se pagar a preço de ouro. Quando uma grande empresa internacional quer fazer um vultuoso investimento em Portugal, sabe também com que escritórios de negócios falar.
4. Esses escritórios e consultoras são constituídos por bons juristas e consultores, gente profissionalmente capaz, sem dúvida, mas o que atrai muitos dos seus grandes clientes, individuais e empresariais, é esse acesso privilegiado. Não estou a dizer que o façam por regra de forma ilegal, mas os mesmos escritórios são também os escolhidos pelo Estado, sem qualquer concurso público, para darem apoio jurídico. Os governos actuam assim neste duplo sentido – são sujeitos e são objecto. Pelos vistos, gerou um pequeno escândalo dentro do escândalo mais geral que um diploma tenha sido feito por um desses escritórios por conta da empresa envolvida, quando vários diplomas são feitos por esses mesmos escritórios por encomenda de ministérios e secretarias de Estado. É m negócio de milhões, muito pouco escrutinado, é o sistema de “cunhas” dos que têm muito dinheiro e muitos interesses para acautelar, é o sistema de “cunhas” dos muito “ricos”.
5. Por debaixo desse sistema milionário de “cunhas” está todo um sistema de favores dos mais remediados e pobres que não tem estes meios, mas que também se movem no acesso ao poder político. Já escrevi e repito que, na Assembleia, quando todo o Governo está presente e há um intervalo, ou acabam os trabalhos, há um certo número de deputados que se dirigem à bancada para falarem com membros do Governo. O que fazem é levar um “problema” da sua terra mediado pelos conhecimentos do partido local, da sua autarquia, de uma qualquer colectividade, que querem ver resolvido.
6. Como acontece com muitas “cunhas”, elas são muitas vezes a única forma de ultrapassar uma burocracia complicada e pouco eficiente, assente em muitos interesses, dependentes do pequeno poder que um funcionário detém e exerce, e são um último recurso que não envolve qualquer interesse ilícito. Condenar as “cunhas” em geral devia sempre ser precedido da crítica a uma burocracia que não é assente no mérito, mas na modorra, na inércia, quando não no interesse próprio de uma miríade de microinteresses, muitas vezes pessoais, de carreira e, no limite, corruptos.
7. Isto para as “cunhas” de baixo, porque as de cima fiam mais fino, são em si mesmas o prolongamento dos grandes negócios, custam caro e inserem-se num sistema de favores que garante muito dinheiro, bons empregos e influência. Muitas vezes tenho referido que é uma ilusão pensar que são os deputados, governantes ou autarcas os alvos de muito jornalismo de retaliação e vingança, que serve de porta-voz do Ministério Público e alimenta o populismo, que detém o poder em Portugal. Errado. O círculo do poder real é discreto e anónimo, move-se longe dos holofotes, mas detém poderes muito importantes.»
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