5.11.23

Dilemas morais e valores da democracia

 


«Já não é a primeira vez que escrevo artigos contra minha vontade. Tudo está tão inquinado, a dramaticidade real – demasiado real – do que se está a passar é tal que de pouco valem as palavras. Há milhões delas no ar, a maioria das quais furiosas, sectárias, combatentes de um lado ou do outro, algumas de lados imaginários, outras de puro oportunismo e aproveitamento, muitas irresponsáveis e algumas mesmo criminosas, que a tentação de ficar calado é grande. Mas há um pecado mortal, a acedia, mal traduzido na lista dos pecados por “preguiça” e eu não queria acrescentar mais um à longa lista dos meus outros pecados. E por isso lá vou falar daquilo a que se tem chamado o “conflito israelo-palestiniano”.

A clareza moral pode condicionar a análise, mas dificilmente a permite sem perder essa mesma clareza. Do ponto de vista moral as coisas são muito simples: o ataque do Hamas é absolutamente condenável e muitos aspectos da resposta israelita em Gaza são igualmente absolutamente condenáveis. São as duas coisas moralmente equivalentes? São. O Hamas queria matar israelitas e fê-lo com uma enorme crueldade, porque queria; os bombardeamentos a Gaza matam crianças, mulheres e homens, designados por “civis”, por indiferença, e entre o assassinato por volição ou o assassinato por indiferença não há distinção moral.

Se ficarmos apenas neste terreno, a disponibilidade para matar intencionalmente pode aparecer mais evidente no Hamas, mas os israelitas sabem muito bem que o que estão a fazer vai para além das necessidades militares e mostram o mesmo desprezo pela vida dos outros, dos inocentes. Para o Hamas todos os israelitas são culpados, para a resposta de Israel todos os palestinianos, crianças, homens e mulheres, podem ser mortos às dezenas para atingir um comandante do Hamas, porque são os “outros”, os do lado errado, ou seja, também são culpados.

O que tem de profundamente errado o diálogo absurdo do Presidente da República com o representante diplomático da Autoridade Palestiniana é a frase: “Desta vez foi alguém do vosso lado que começou.” E, mesmo quando precisou com um “alguns de vocês”, é exactamente o “vocês” que coloca na acção do Hamas a culpa de todos os palestinianos. Ele está a falar com alguém do sector moderado da Palestina, que reconheceu o Estado de Israel, e que o Hamas vê como traidor e inimigo e que sente como “seus” os que o Presidente classifica de “vocês”, como é de todo natural. Se alguém nesta situação, com as pilhas de mortos inocentes atrás, me dissesse que tenho de ser “cauteloso, inteligente e pacífico”, eu passava-me certamente.

O terreno da moral é fundador, mas o “ruído do mundo” vai para além dele. Uma pessoa bem formada não esquece o dilema moral, mas a realidade é mais complexa e bastante menos clara e é aí que as opções são de outra natureza.

Significa isso que os actos do Hamas e os de Israel são politicamente equivalentes? Não, não são. O que é que significa aqui “politicamente”? Significa a entrada em jogo da polis, da civilização, de um conjunto de valores que tem que ver com a liberdade e a democracia e que são escolhas humanas de formas de viver e de se organizar, imperfeitas, mas distintas. E é por isso que, quando entramos nos motivos e nas circunstâncias, as coisas começam a complicar-se. O ataque do Hamas é um acto de pura vontade que se exerce pela pura maldade. A ambiguidade da frase de Guterres sobre o “vácuo” é condenável, porque atribui uma razão a um acto inaceitável à luz do direito e dos valores daquilo a que chamamos precariamente “civilização”. Se o Hamas atacasse militares, podia-se falar de “ocupação”, mas quando massacra civis a condenação não tem contexto.

Daí vem o direito de Israel de se defender como Estado e de assumir a defesa dos “seus”, e, dada a natureza de uma organização como o Hamas, comparável ao Daesh na visão apocalíptica do Islão, isso pode significar persegui-los e, na verdade, matá-los em combate. Só isso e não é pouco, mesmo com baixas “colaterais”. Colaterais significa poucas, indesejadas e inevitáveis.

Para além disso, por imperfeita que seja hoje a democracia israelita, e por corrupto, racista e intolerante que seja o seu actual Governo, a maioria da população comporta-se na sua acção política como “nós”. Não é irrelevante este “nós”, porque significa uma partilha de valores sobre a “polis” que, num mundo hostil, de ditaduras, de perseguições religiosas, de extermínio do “outro”, de lei da força e do poder, defende essas coisas muito precárias como a liberdade e a democracia.

É por isso que Israel, sob o comando de um governo como o de Netanyahu, pode ganhar a guerra ao Hamas, pode perder tudo nessa vitória – os valores de cidadania, do direito, de humanidade, de prestígio na opinião dos amigos do país, incluindo a própria segurança a médio e longo prazo de Israel. E é o que está a acontecer e não é junto dos que gritam “Palestina, do rio até ao mar”, mas dos que viam no Estado de Israel uma democracia, que vem para as ruas para travar o ataque de Netanyahu aos juízes, que é forte militarmente por absoluta necessidade e que podia, podia, podia ter encontrado na solução dos “dois Estados”, assente em garantias para Israel e compensações justas para os palestinianos, um esboço de paz para a região. Não é só culpa de Israel, mas cada vez mais é também culpa de Israel.»

.

0 comments: