6.11.23

Presidencial embaraço

 


«O diálogo entre o Presidente da República e o chefe da missão diplomática da Palestina em Portugal, durante o bazar diplomático, revelou, antes de tudo, uma enorme insensibilidade política e humana de Marcelo Rebelo de Sousa. Dizer, quando morrem milhares de civis palestinianos em Gaza, “não deviam ter começado” é, ao contrário do que aconteceu com as declarações de António Guterres na ONU, uma forma de responsabilização das vítimas. Porque lhes atribui uma culpa coletiva pelos massacres do Hamas (“o vosso lado”). Ainda por cima, sem qualquer condenação destes bombardeamentos, que parecem ser vistos com uma reação compreensível, não desproporcionada.

O fim de semana que dedicou ao recorrente “Marcelo explica Marcelo” não foi uma correção. Passou dois dias a dizer o oposto do que dissera. Na Feira da Golegã, disse tudo o que não lhe ocorreu dizer quando falava com um diplomata em público. Em Belém, até se juntou a uma manifestação, deixando-se fotografar ao lado de bandeiras da Palestina, para, com um excesso desnecessário num Presidente, tentar apagar o excesso anterior. Infelizmente, o que conta, num assunto internacional, é o que diz para fora, em inglês, a um diplomata, não o que diz para dentro, para se desdizer em português perante a opinião pública nacional.

Este conflito é um continuo de décadas. Não é simples dizer quando ele começa e acaba. Para a população que vive nos territórios ocupados ou cercada por muros, nunca esteve interrompido, na realidade. No último mês, foram mortos, por colonos armados pelo governo israelita, mais de 120 palestinos na Cisjordânia, onde supostamente não se desenvolve o conflito. Já se pode dizer que foram os israelitas que começarem aí uma guerra ou só começará quando houver uma resposta mais violenta de quem legitimamente vive naquelas terras?

Dar o contexto, como fez o secretário-geral da ONU e Marcelo diz ter concordado, só pode ter um objetivo: identificar os problemas políticos a resolver, coisa que Marcelo não fez, porque se dirigiu a um representante da Autoridade Palestiniana, que tem tido uma postura pacífica, responsabilizando-o por aquilo pelo qual nunca poderá ser responsabilizado. E nunca deixando de condenar todas as formas de violência sobre civis, coisa que o Presidente não achou necessária, não tendo, depois de referir sete vezes os massacres do Hamas, uma palavra de empatia para com milhares de vítimas em Gaza.

É sabido que a política internacional não é a praia de Marcelo e pode haver alguma ignorância à mistura. Talvez não saiba que, sendo o diplomata representante da Autoridade Palestiniana, deverá, muito provavelmente, ser membro ou próximo da Fatah. Que os dirigentes do seu partido em Gaza foram perseguidos e mortos pelo Hamas, em 2007. E que Netanyahu e os seus aliados sempre viram esta vitória dos islamistas contra os laicos como uma excelente notícia para Israel (espero tratar deste tema esta semana, aqui).

Imagine-se representar aqueles que se têm batido pela via pacífica, mesmo durante uma ocupação, ser responsabilizado na rua pelos seus compatriotas por isso apenas ter oferecido três décadas de derrota e ainda receber um puxão de orelhas condescendente de um chefe de Estado visivelmente pouco conhecedor da realidade no território. A Autoridade Palestiniana é a única força moderada neste conflito. Entalada entre radicais, precisa de apoio internacional, não de ralhetes.

A conversa de Marcelo, feita como Presidente da República, num momento oficial, vinculando o Estado português, está desalinhada com as intervenções públicas do governo português e até dos principais responsáveis europeus e norte-americanos, os mais incondicionais aliados de Israel. Ou seja, Marcelo conseguiu ser mais radical do que aqueles que, podendo travar os crimes de guerra a que assistimos em Gaza, não o fazem. Talvez porque a nenhum deles passe pela cabeça ter um bate-boca com um diplomata em frente às câmaras de televisão sobre um tema com esta sensibilidade. Se Portugal tivesse algum poder, esta recorrente e crescente falta de aprumo institucional do Presidente seria um problema grave para o País. Assim, é “só" um enorme embaraço.

Tirando um fim de semana de contorcionismo político do Presidente, o incidente não terá qualquer consequência política. Não apenas porque Portugal é diplomaticamente irrelevante neste assunto, mas porque as declarações do Presidente, banalizadas até à vulgaridade, se tornaram, elas próprias, irrelevantes. É uma “marcelice”, dirão muitos encolhendo os ombros. E isso não é apenas um problema para Marcelo. É um problema para a Presidência e, por isso, para o país.»

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