24.11.23

Uma distopia argentina

 


«Esta semana circulou nas redes sociais uma imagem da inesquecível “Mafalda”, a personagem de banda desenhada criada por Quino, uma menina contestatária com um profundo sentido de justiça, de ombros caídos, derrotada, a chorar. Vem isto a propósito da vitória de Javier Milei nas eleições presidenciais argentinas do passado dia 19 de novembro. Apesar de Sergio Massa, um “peronista de esquerda” ter vencido na primeira volta, Milei ganhou a segunda volta com 55% dos votos, beneficiando do apoio da candidata de direita, Patricia Bullrich.

O resultado não surpreende totalmente, uma vez que a Argentina está em recessão há vários anos, tem uma inflação de 143% ao ano, 40% da população na pobreza e as taxas de juro estão em 133% ao ano. E Massa era o ministro da Economia do Governo anterior...

Ainda assim, tem de merecer profunda reflexão e preocupação a escolha democrática pelo povo argentino de um candidato ultrapopulista, ultraliberal, anarcocapitalista, com discurso e comportamento delirantes. Milei afirma falar com Deus, apresentou-se em público com uma motosserra para “exterminar a casta política” e comporta-se sistematicamente de forma totalitária e errática.

Como já antes escrevi nestas páginas, a propósito do crescimento dos fenómenos populistas de extrema-direita, pessoas desesperadas procuram soluções radicais. Quando as pessoas se sentem deixadas para trás pelo poder político e pela sociedade, tendem a aderir a discursos simplistas e a medidas drásticas, por vezes até absurdas. Foi isto que aconteceu na Argentina.

Milei promete privatizar todos os serviços públicos, incluindo a saúde, a educação e a segurança social (imagine-se o que isso vai significar para os 40% de pobres!), bem como os recursos naturais; nega as alterações climáticas (que considera uma “agenda do marxismo cultural”); defende a “dolarização” e a extinção do Banco Central da Argentina. Promete uma profunda reforma da Administração Pública, que passará, desde logo, pela extinção dos ministérios da Saúde, da Educação, da Segurança Social e do Ambiente — que serão inúteis na sociedade ultraliberal, capitalista e desigualitária que preconiza.

No plano dos direitos e das liberdades, Milei quer proibir a interrupção voluntária da gravidez, permitir a venda de órgãos humanos entre pessoas vivas e liberalizar o porte de arma. Os direitos das mulheres e das minorias serão restringidos, assim como os direitos sociais. E já disse que não hesitará em chamar as forças armadas para reprimir protestos.

O seu discurso põe em causa o consenso existente na sociedade argentina sobre os genocídios cometidos na ditadura, patente no facto de pretender rever o pagamento de indemnizações às vítimas da ditadura militar de 1976-82.

Apesar de todo este cenário de pesadelo, após a eleição de Milei as empresas argentinas subiram em bolsa — o que demonstra bem como o capitalismo funciona.

As consequências internas e externas deste resultado eleitoral são imprevisíveis. Existe hoje na Argentina o risco efetivo de uma deriva totalitária num país que é uma democracia apenas há 40 anos depois de uma ditadura militar sanguinária. Mas o povo desesperado parece preferir este risco à ausência de resposta aos seus problemas por parte do poder político democrático. Foi o que aconteceu na Alemanha na República de Weimar e conduziu à ascensão dos nazis ao poder...»

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