15.11.23

Viesse a demissão do governador do Banco de Portugal, que isto está demasiado morno

 


«Com as redações inundadas por escutas, resultados de buscas e bocados do processo enquanto se exige que os visados respeitem o tempo da Justiça, desenvolveu-se uma segunda novela que chegou ao fim sem se saber quem rasteirou quem: a do convite a Mário Centeno para refletir sobre a possibilidade de liderar um governo sem que se fosse a eleições. Nem perco tempo com a centésima novela entre Marcelo e Costa. A ideia é tão despropositada que a atribuo à perda de norte de alguém apanhado inesperadamente por esta ventania.

Uma solução deste género nunca poderia ser proposta pelo primeiro-ministro demissionário, que não se sente em condições políticas para continuar a governar. E nunca resultaria num governo estável e muito menos forte. Seria o destroço de uma crise.

O que aconteceria depois? Supondo que Pedro Nuno Santos será o eleito, teríamos um primeiro-ministro que não é sequer militante do PS, um líder da maioria parlamentar com mais legitimidade política do que o primeiro-ministro e os dois discordando provavelmente em bastantes coisas. Isto, depois da maior crise política que abalou a nossa democracia constitucional.

Convidar o governador do Banco de Portugal seria sempre um problema. Ao contrário do que uma corrente ideológica tem conseguido impor, ser governador de um banco central é e sempre foi um cargo político. Com exceção de Tavares Moreira, que não acabou bem, e Carlos Costa, que acabou pior, todos os governadores tiveram funções políticas executivas. É da banca, que regulam, que têm de ser realmente independentes, coisa que parece não preocupar ninguém. Aparentemente, este convite incomodou o BCE, dirigido por dois políticos de carreira, uma delas sem formação económica, que tiveram funções executivas. Que nunca deixaram de ser políticos com agendas ideológicas não sufragadas.

Ainda assim, fazer um convite a um governador em exercício para transitar para o governo depois de ter vindo desse governo é um exercício arriscadíssimo. Ainda mais quando não se tem a certeza absoluta se o Presidente da República vai aceitar a proposta. Para piorar, António Costa resolveu fazer um comício em frente à sede do PS, transformando esta ideia frustrada em arma do seu último confronto com Marcelo.

Depois, veio a confusão das declarações de Centeno ao Financial Times. O que passou delas é que terá sido convidado pelo Presidente e o primeiro-ministro, coisa que Marcelo e o próprio Centeno acabaram por desmentir. Seria uma gafe relevante noutra altura, agora temos de ponderar a importância de cada assunto, com o risco de destruirmos o país.

Uns por causa do que disse ao FT, outros porque acham que a sua independência está posta em causa (os mesmos que defenderam a recondução de Carlos Costa depois da hecatombe do BES), várias vozes defenderam a demissão de Mário Centeno. São bons momentos para verificar como algumas pessoas que enchem a boca com a estabilidade e a forma como os mercados olham para nós, quando isso é útil ao seu programa político (sobretudo se ele for impopular), atiram tudo para o largo quando é conveniente.

A uma crise política sem precedentes houve quem quisesse juntar a demissão imediata do governo, sem aprovação do Orçamento de Estado, ficando o país em duodécimos durante meio ano, em plena aplicação do PRR. E a isso ainda quisesse juntar a demissão do governador do Banco de Portugal em plena crise reputacional.

Construindo este cenário dantesco, que inevitavelmente transformaria uma crise política numa crise financeira e económica, seria fácil, no dia seguinte às eleições, ignorar tudo o que se disse na oposição e se prometeu em campanha. Quem, independentemente das culpas do primeiro-ministro, junta tanta irresponsabilidade, não está à espera do diabo para vencer as eleições. Está a chamar o diabo para a narrativa que precisa depois das eleições.»

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