30.12.23

A traição à Ucrânia e à Palestina

 


«A palavra traição é uma das mais duras que se pode usar para tratar de qualquer questão nacional e internacional, mas é a palavra certa para definir o que se passa na Ucrânia e na Palestina. Os traidores são os republicanos americanos chefiados por Trump, em conjunto com os bloqueadores europeus, em particular a Hungria, isto no que diz respeito à Ucrânia. No caso palestiniano, no massacre de Gaza, os traidores são todos aqueles que estão a permitir ao governo israelita matar indiscriminadamente crianças, mulheres e homens, a tornar Gaza inabitável e a atirar milhões de pessoas para mais uns campos de refugiados, a somar aos que desde o final da década de 1940 são o local de vida de uma parte importante dos palestinianos.

A Federação Russa pode ter imensas queixas do risco que representa para a sua segurança a proximidade da NATO às suas fronteiras, e Israel foi vítima de um ataque cruel e impiedoso do Hamas a civis, mas nem num nem noutro caso a resposta tem a ver com os motivos iniciais. A invasão da Ucrânia e o massacre e destruição de Gaza são muito mais do que uma resposta ao que aconteceu, são medidas de política próprias, com objectivos absolutamente inaceitáveis para a ordem e o direito internacional, para a soberania das nações, para os direitos humanos e, no terreno da realpolitik, uma ameaça aos poucos países do mundo que são governados em democracia e que têm liberdade. Tudo isto significa que em 2024 se entra no período mais perigoso para o mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Eu disse e repito, para o mundo.

Aqui convém diferenciar os dois conflitos, porque não são da mesma natureza nem geram riscos de idêntica dimensão. O conflito em Gaza é mais uma página tenebrosa de uma guerra que conhece períodos de baixa intensidade e momentos de uma violência extrema. Mas é um conflito regional cujo impacto fora do Médio Oriente, para além do preço do petróleo, são as acções terroristas ligadas aos grupos palestinianos e árabes, do Afeganistão ao Irão, passando pelos territórios palestinianos até à diáspora muçulmana em todo o mundo, pelo 11 de Setembro nos EUA e pelos que andam sossegados nas suas compras e são esfaqueados ao acaso em Bruxelas ou em Paris, ou que vão pelos ares num atentado bombista. É um conflito localizado numa parte do mundo e na sua história densa de ódios, com uma herança violenta de contas a pagar, e cuja força de vingança e memória a torna muito difícil de amainar, quanto mais de resolver.

O conflito da Ucrânia é, num certo sentido, muito mais grave, com muito maior possibilidade de consequências. Não é uma minimização do que se está a passar em Gaza, é apenas porque é diferente a dimensão do seu alcance. É um genuíno conflito mundial, tocando por si só o frágil tecido das relações de força internacionais pelo seu risco de uma “mútua destruição assegurada”. A possibilidade de uma guerra nuclear é muito maior. Nunca se ouviram com tanta frequência as ameaças de utilização de armas nucleares como as vindas da Federação Russa, uma das grandes potências nucleares, que considera, sem qualquer motivo, que esta guerra é “existencial” para a sua sobrevivência. Pode ser para Putin, a sua clique e os seus planos, não é certamente para a Rússia, que foi quem a começou.

A guerra da Ucrânia é uma guerra de conquista territorial, de subjugação neocolonial para toda uma região, com um direito de definir o que várias nações podem ou não podem fazer, em termos militares, em termos de política interna e externa, de condicionamento das suas alianças políticas e económicas – hoje a Ucrânia, a Geórgia e a Moldova, amanhã os países bálticos e a Polónia, até à Finlândia. O risco de uma derrota ucraniana – e qualquer cedência de território é uma vitória para Putin –, associada a uma espécie de reconstrução da URSS pela força das armas, não é um papão qualquer, é suficientemente real para levar a Suécia, com a sua longa tradição de neutralidade, a entrar para a NATO.

A traição dos republicanos “trumpistas” e dos “cansados europeus” garante tudo menos a paz, garante mesmo a guerra europeia, e isso também diz respeito a Portugal. Já não digo que o que está em jogo é da ordem da democracia e da liberdade – também é –, mas é essencialmente o valor da paz, que permite tudo o resto. A traição a Gaza retira muito da possibilidade de se usar um argumento de princípio por parte do chamado “Ocidente” e fragiliza qualquer superioridade moral. Mas, se querem pôr as coisas nos termos frios dos interesses e das relações de força, a traição à Ucrânia enfraquece-nos como nação soberana e prejudica os nossos interesses. A traição aos palestinianos coloca-nos do lado do mal e faz-nos ir para o Inferno.

Nenhuma das coisas é boa.»

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1 comments:

Niet disse...

Os USA têem recuperado alguma evidência cruel face à estratégia mortifera do PM Netanyahou para
destruir por bombardeamento a Palestina. Segundo informacoes do Washington Post, Biden opoe-se com afinco ao projecto de erradicacäo étnica que a coligacäo de extrema-direita no poder em Telavive tenta levar por diante deportando para o Egipto as centenas de milhares de palestinos acantonados junto a Raffah. As autoridades egipcias já reforcaram com destacamentos militares a sua fronteira.O melhor especialista da tragédia Palestina, Rashid Khalidi,que tem realizado um trabalho admirável de comentador nas colunas do NY.Times acompanhando o desenrolar da tragédia de Gaza e da sua extensäo destruidora a quase toda a Palestina, destaca que as posicöes de tolerancia dos USA face aos crimes da equipe Netanyahou iräo " diminuir o poder, a posicäo e a seguranca dos USA e dos seus aliados". Niet