28.12.23

Chega de normalização do Chega

 


«Em 2017, quando venceu as eleições pela primeira vez em França, Emmanuel Macron apresentou-se como um forte e convicto europeísta, acreditando nos valores de solidariedade, de unidade e de democracia. Como em tantos outros aspetos da sua vida política, e nos diferentes projetos que defendeu ou preconizou, Macron teve uma entrada de leão e uma saída de sendeiro. Seis anos depois, e pouco tempo depois de ter assegurado a sua difícil reeleição, Macron passou de um convicto europeísta a impulsionador de uma das mais nacionalistas e xenófobas políticas de imigração já aprovadas na União Europeia. Há poucos dias, o partido do Presidente francês aprovou uma lei que é retirada quase diretamente das propostas da extrema-direita francesa. Aliás, foi a própria Marine Le Pen que caracterizou a aprovação da nova lei da imigração como uma “vitória ideológica”. Ora, quais os principais pontos desta reforma?

/ O primeiro é uma alteração do critério do direito do solo, que deixa de reconhecer automaticamente como franceses os filhos de imigrantes nascidos em França aos 18 anos, dificultando o acesso à nacionalidade a quem nasceu em território francês.

O segundo diz respeito às alterações do reagrupamento familiar, aumentando-se o tempo exigido de permanência no país para início do pedido e o aumento da idade do cônjuge de 18 para 21 anos. Mais significativo é o facto de se aumentarem as exigências relativas à condição financeira do requerente, aumentando a discricionariedade das mesmas.

Em terceiro lugar, a imposição de restrições de entrada a estudantes estrangeiros, nomeadamente através da exigência do pagamento de uma caução financeira que assegure a possibilidade de regresso destes ao país de origem.

Em quarto, o regresso do delito de permanência ilegal, que havia sido eliminado por Hollande em 2012, depois de a França ter sido instada a adequar o seu ordenamento jurídico ao direito europeu. Assim, qualquer imigrante que permaneça em território francês de forma irregular ou para além do tempo concedido pelo visto fica sujeito a uma multa de 3750€ e uma interdição de entrada no país de três anos. Por agora, fica de fora a proibição de acesso ao serviço nacional de saúde francês por parte de imigrantes em situação irregular, mas esta medida – mais uma exigência de Le Pen – deverá ser alvo de revisão em 2024.

Finalmente, o ponto mais importante para a extrema-direita é o reconhecimento da denominada “preferência” ou “prioridade nacional”, que garante prioridade aos cidadãos franceses face aos estrangeiros em vários domínios, desde a seleção para postos de trabalho à atribuição de apoios sociais.

Ora, que tem tudo isto que ver com a extrema-direita xenófoba portuguesa, o Chega? As bandeiras que agita em Portugal contra os imigrantes – aqueles que em 2022 contribuíram com um saldo líquido de mais de 1600 milhões de euros para a nossa Segurança Social – são igualmente agitadas pelo seu partido irmão em França. Só que em França os portugueses são parte desses imigrantes contra quem são agitadas essas bandeiras. E os filhos de muitos daqueles que para lá emigraram veem agora restringida uma parte considerável dos seus direitos.

Em Portugal, a campanha eleitoral está aí à porta e os esforços da direita política e mediática para a normalização do Chega têm subido de tom e de intensidade. Querem-nos convencer que daí nenhum perigo advirá e que quem contra isso adverte está apenas a agitar bandeiras de medo e a fazer de menino a alertar para o lobo.

“O Chega não é um partido antidemocrático e tem toda a legitimidade de existir”: Pedro Passos Coelho, ex-primeiro-ministro do PSD, numa conferência realizada em Oeiras, em novembro deste ano. “Só há quatro partidos com quem o PSD não se pode entender: o Livre, o PCP, o Bloco e o PS. A partir daí, tem de haver uma diferenciação de blocos: o PSD lidera o bloco do centro-direita; o PS lidera o bloco do centro-esquerda”: Miguel Relvas, num comentário na CNN. “O Chega é um partido como outro qualquer”: Raquel Abecasis, jornalista e ex-candidata do CDS em eleições autárquicas e legislativas, também na CNN. E as citações poderiam continuar, com várias figuras da direita a abrirem caminho e a legitimar uma mais que previsível intenção de coligação governativa entre toda a direita portuguesa, o que significaria levar André Ventura e seus correligionários para um futuro governo liderado pelo PSD.

Tal como no caso da recente cedência dos liberais franceses a Marine Le Pen nas questões da imigração, e como sucede já em vários países europeus – Finlândia, Suécia ou Itália – ou como poderia ter sucedido em Espanha, com o acordo de coligação entre o PPE e o Vox –, por muito que o líder do PSD nos tente convencer do seu distanciamento tático de Ventura, também no nosso país corremos o risco de ter a extrema-direita no poder – à semelhança do que aconteceu nos Açores. E isso só nos pode deixar sobejamente apreensivos pelos riscos que comporta para a nossa democracia, para os princípios do Estado de direito e pelo respeito pelos direitos individuais, sobretudo de minorias.

Toda a política que assenta na lógica de “nós e os outros”, como defendem Ventura e seus acólitos, tem sempre este problema: num dia nós somos “nós”, noutro dia nós somos os “outros”. E todos aqueles que olham para esta dimensão da política da extrema-direita nacional como apenas um detalhe escolhem, propositadamente, passar um pano pela gravidade histórica que tem qualquer processo de desumanização. Como está bem inscrito num monumento evocativo dos crimes de genocídio do nazismo, em Auschwitz-Birkenau, o Holocausto não começou com os campos de concentração, mas sim com a retórica do ódio. É tempo de parar com esta normalização do discurso de ódio e daqueles que fazem da sua utilização o seu principal trunfo político. Antes que seja tarde de mais.»

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1 comments:

Fenix disse...



As pessoas que agora afirmam que a extrema direita no poder é a democracia a funcionar, porque foram eleitos, talvez devessem refectir, sobre o passo seguinte a dar: pois, quem coloca "os verdugos" no poder pela eleição vai ter que retirá-los pela revolução!