«Nos invernos chuvosos da minha infância o musgo abundava junto aos ribeiros e não havia crise climática a ensombrar o ritual de o colocar no presépio. As figuras toscas e coloridas espalhavam-se pela sala dos avós e não faltavam elevações, pontes e outros efeitos para emprestar realismo ao cenário. Na noite de 24, o menino sorridente e de braços estendidos para o mundo era colocado no seu lugar até então vazio. Era fácil acreditar, porque na infância todas as possibilidades cabem dentro de nós.
Crescer é necessariamente ser cercado pela dúvida. No olhar sobre o Natal cancelado em Belém, na Cisjordânia, e sobre os destroços de Gaza onde milhares de crianças perdem a vida. No abandono dos sem-abrigo e de famílias inteiras encurraladas pelos preços altos da habitação. Na solidão de imigrantes explorados no trabalho ou olhados com desconfiança. No aperto de dois milhões de portugueses em risco de pobreza, sem salário ou sem mesa farta.
Perdida a ingenuidade de outros tempos, a estrela não brilha a apontar caminhos nem se ouvem vozes serenas a anunciar a paz universal. Mas, sejam quais forem os mistérios - da fé ou do entendimento -, há sempre alternativas para procurar soluções e construir uma sociedade mais justa, mais humanista e em que todos possam ter direito a uma noite feliz.
Os populismos, extremismos e individualismos alimentam-se de medo. Se há prenda que vale a pena pedir no sapatinho, em vésperas de duas idas às urnas, é a liberdade de pensar sempre além do medo. Sem deixarmos que o azedume nos encolha. Se nos permitirmos ser inteiros, límpidos como nas noites em que tudo brilhava e parecia seguro, é possível que os sinos toquem. Não por magia, mas porque nós assim fizemos acontecer.»
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