25.12.23

Os vendedores do Natal

 


«Percorrendo aos encontrões corredores e escadas rolantes do Corte Inglês, depois de na véspera ter desistido - por correr o risco de asfixia - de comprar um pacote de leite, um pack de iogurtes biológicos, um cacho de bananas e outras necessidades básicas para sobreviver ao grande bacanal natalício num dos super-giga-hipermercados que rodeiam a capital, dei por mim a amaldiçoar o homem que inventou o Natal. Não o Jesus, coitado, que não só era um recém-nascido isento de quaisquer culpas como até - asseguram as boas fontes - isento do pecado original porque, como o nome indicia e foi astutamente detectado por Santo Agostinho, foi "concebido sem pecado". Se o Santo o diz, e na sua infinita sabedoria que fez dele um dos Pais da Igreja até se pode hoje detectar uma capacidade de olhar para o futuro e prever quase dois milénios depois "concepções sem pecado" feitas em provetas, bancos de esperma, inseminações artificiais e manipulações genéticas e até o milagre de conceber depois de morto, pouco resta senão acreditar porque, como avisava outro sábio, São Tomé, há coisas que só depois de vistas se podem acreditar.

E uma delas eram as bichas intermináveis para as caixas dos hipermercados nas vésperas de Natal. Os portugueses ganham mal. Mais de um terço dos portugueses estão no patamar da miséria. A desigualdade social em Portugal, medida através do instrumento analítico que serve para medir essas coisas e que os técnicos designam como "coeficiente de Gini", é uma das maiores da Europa. Portugal conseguiu diminuir essa desigualdade até 2019, mas desde então - e a culpa não foi só da pandemia - tem vindo a aumentar. Os Açores e a Madeira são as regiões onde é maior a diferença entre os que mais ganham e os que menos ganham. Onde há menos desigualdade, dizem as estatísticas, é nas grandes regiões urbanas, provavelmente porque é também aí que se concentram serviços públicos e privados e as grandes empresas.

Uma maneira empírica e pouco científica de constatar essa desigualdade é o estudo de campo, como se diz em sociologia, a que fui obrigado nas bichas do hiper-super-gigamercado de subúrbio e do super-hiper-gourmet do Corte Inglês. E menciono o Corte Inglês não por ser particularmente exclusivo, mas porque - como outros estabelecimentos reputados e elitistas da capital - a sua fama e clientela o distingue e torna especialmente eficaz para efeitos de observação analítica, constatação sociológica e veredicto natalício.

Entre as bichas do super de subúrbio e as bichas do hiper do centro de Lisboa a diferença não era nem na densidade da multidão nem na sua qualidade embora, se fizesse alguma diferença ou fosse estatisticamente significativo, se pudesse desde logo observar os desníveis sociais atestáveis quer pela quantidade de fibras naturais - algodão, seda, lã, para nem mencionar outras origens animais menos consensuais como vison ou mesmo coelho presentes nas referidas bichas, por oposição à percentagem de fibras sintéticas. Roupa de plástico. Não, o que é estatisticamente significativo não é nem o cliente, nem as roupagens que envolvem o cliente - até porque, numa época de massificação de consumos e de imagens e de uniformização das multidões, o que distingue uns jeans baratos de outros caros é na maioria das vezes apenas uma etiqueta.

A massificação de usos e consumos atinge o apogeu no Natal - embora se possa admitir que a época pré-natalícia com a introdução das black fridays e a pós-natalícia com os saldos possam estar ao mesmo nível de consumo descontrolado. Mas há uma diferença. Não há black fridays de bacalhau ou rabanadas nem saldos de peru ou bolo-rei. O que caracteriza e é específico da orgia consumista do Natal é o que se põe na mesa, eventualmente na boca, e seguramente acabará nos sistemas de saneamento básico providenciado pelas autarquias. A comida. Ou o excesso dela. Compra-se comida com os olhos, com a imaginação, com a saliva mental de recordações de sabores passados. Compra-se comida a mais, numa glutonice democrática e universal e natalícia que a experiência e a ciência médica demonstra ser um exercício de desperdício e de abandono ao colesterol. Basta ver nas bichas o que as pessoas vão comprar.

Não. Quem inventou o Natal não foi Jesus. Nem Constantino, o imperador que decidiu transformar os rituais pagãos do renascimento na Natividade cristã. Nem sequer Dickens, apesar do talento e génio do escritor ter contribuído para mudar uma festa de família numa festa de solidariedade, paz e amor. Só até ao dia seguinte, claro. Não, quem inventou o natal actual, o natal das comezainas e dos excessos, foram os donos dos supermercados, os vendedores de comida e os vendedores de sais de frutos.»

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