22.1.24

2023: o ano zero da nossa xenofobia?

 


«Para os convertidos à teoria da grande substituição, obcecados em reconquistar um país prestes a cair nas mãos destes novos mouros, apelar aos factos costuma não servir de muito.

Quem passou um fim de semana chuvoso em frente da televisão a fazer zapping, viu um André Ventura ir ao Minho e voltar de lá aclamado pelo partido como o nosso querido e grande líder. Também pode ter ficado com a sensação de que os tradicionais ciganos com um Mercedes à porta andam a perder terreno no concurso do subsidiodependente de serviço. Agora, a moda é os nascidos no Indostão que, aparentemente, se transferiram em massa para o Martim Moniz.

Nos manuais escolares, o Indostão é o subcontinente indiano — o que deve ser visto por quem anda a fotografar todos os turbantes que aterram na Portela como uma manobra do politicamente correto para nos enganar. O que está a acontecer, para quem não se deixa enganar pela propaganda socialista e dos seus acólitos sociais-democratas, é uma invasão de maltrapilhos, que recebem dinheiro líquido mal entram em território luso. Ainda entopem o Sistema Nacional de Saúde, onde têm ninhadas de filhos, que vão acabar depositados nas nossas escolas a atrapalhar os nossos meninos.

O discurso contra a invasão de imigrantes não é novidade por esta Europa fora. Não parecia era mobilizar o povo português. Entre 2002 e 2022, os dados recolhidos pelo European Social Survey mostram um país tranquilo ou entusiasmado com os estrangeiros que escolhiam Portugal como destino de vida, vindos de onde viessem. Só que, a crer uma sondagem do ICS/ISCTE divulgada no X pelo Pedro Magalhães, 2023 pode ser o ano em que virámos xenófobos. A proverbial tolerância portuguesa para com os estrangeiros parece ter acabado com a chegada de cada vez mais gente, muita vinda de paragens demasiado exóticas e que não fala sequer a nossa língua. Os 62% de portugueses que aceitavam sem grande problema receber estrangeiros mais pobres vindos de fora da Europa, passaram a ser só 37%. Temos agora 61% de lusitanos que, no máximo, deixam entrar uma dúzia de Samires e Abdules — chega perfeitamente para os pedidos da UberEats e, como temos medo, já voltámos a andar de táxi.

O mesmo Ventura que, desde o seu doutoramento, é especialista em capitalizar os nossos medos, não ia deixar passar esta onda sem a cavalgar. Prometeu acabar com todos os observatórios, mas ainda deve ter lido o Relatório de 2022 do Observatório das Migrações. Sobretudo a parte que explica a diferença entre os factos e as nossas perceções em matéria de imigração. Portugal é o país onde mais gente sobreavalia a proporção de imigrantes nascidos fora da União Europeia que aqui vivem — só 20% conseguem fazer uma estimativa próxima da realidade; 40% dizem logo não fazer a menor ideia. Ventura pode assim descrever uma cidade de Braga a albergar 30% de estrangeiros, quando, em 2022, estavam por lá uns 3,6% — estima-se que possam ter, entretanto, chegado a uns 7,9%. É verdade que a população imigrante cresceu em Braga, vinda sobretudo do Brasil. Mas, mesmo conhecida como Braguil, ou talvez por causa disso, também é uma das nossas zonas mais dinâmicas.

Para os convertidos à teoria da grande substituição, obcecados em reconquistar um país prestes a cair nas mãos destes novos mouros, apelar aos factos costuma não servir de muito. Mas tenho dificuldade em crer que, depois de conviver de forma pacífica com sucessivas vagas de imigrantes, uma parte tão significativa dos meus conterrâneos tenha, uma bela manhã de novembro, acordado na pele de um nativista radical. Temos é de arregaçar as mangas e contar a realidade a quem pode sentir-se mais inseguro perante esta nova vaga — sem paninhos quentes ou medo de articular todos os desafios que ela nos coloca como país.»

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