20.1.24

As notícias “nossas” e as “deles”

 


«O recente Congresso dos Jornalistas foi dominado pela crise dos aspectos económicos e sociais que hoje avassalam o exercício da profissão, muitas vezes entregue a interesses que nada tem a ver com o jornalismo e a alguns abutres que vão ganhar dinheiro pelo caminho. No caso da Global Media é inadmissível que não se saiba quem são os donos de uma parte significativa da comunicação social portuguesa e que um sector que está sempre a reclamar pela transparência seja opaco numa questão fundamental. Imaginem que é um fundo russo, manipulado pelo Kremlin, ou o resultado de uma lavagem de dinheiro da droga?

Mas o problema do jornalismo é também o da sua qualidade, das ideias dominantes entre os jornalistas e da mecânica da criação e circulação das notícias. O problema do modo como as notícias são dadas é uma das manifestações do contínuo político-mediático que é hoje é um genuíno factor de crise da democracia afectando o “jornalismo de cima” e ampliando muito do “jornalismo de baixo”, que não é jornalismo mas é muitas vezes citado como produtor de notícias sem qualquer cumprimento de regras da profissão. O jornalista que usa como fonte as redes sociais está a suicidar-se como jornalista, como se frases sem edição ou contexto, pseudofactos ou fake news pudessem ser consideradas fontes noticiosas.

Duas questões moldam esse contínuo: uma é a crescente politização do “jornalismo”, outra é a subordinação do discurso jornalístico a lugares comuns, modas, superficialidade, incompetências, estereótipos, que faz com que a politização seja muitas vezes involuntária, pela dificuldade de se sair do rebanho, e ter autonomia de julgamento. Este efeito é potenciado pelo papel amplificador das classificações correntes nas redes sociais que imediatamente designam quer jornalistas, quer comentadores (e hoje o comentário não separa os jornalistas que o fazem dos restantes comentadores) de direita ou esquerda conforme as conveniências do autor de mensagens e entram na habitual guerra radical, que marca o contínuo político-mediático nestes dias.

Este é um processo que já não é novo, é mesmo anterior à existência de redes sociais, mas retrata a fragilização dos critérios jornalísticos. O Independente, que foi um jornal que moldou uma escola de jornalistas, como antes o Expresso o tinha feito com o jornalismo de cenários, preparou a ascensão da direita “popular” que mudou o nome do CDS, com uma mistura de snobismo de burgueses que tinham a nostalgia de não serem nobres, e os admiradores do “velho dinheiro” em contraste com o “novo dinheiro” da democracia, ridicularizando os homens das “meias brancas” que não sabiam comer à mesa. Esse forte snobismo social marcou muito do ataque ao chamado cavaquismo. Do mesmo modo, repete-se sistematicamente que a “geringonça” é que gerou a crise do PCP, quando não há qualquer evidência que tenha sido isso que afectou o eleitorado do PCP.

Vejamos alguns exemplos actuais. Por exemplo, quando se está a discutir o aumento significativo de mortalidade nos últimos meses a pergunta que ouvi feita a um especialista que estava a falar de vários factores explicativos foi a seguinte: “Não se deverá esse aumento de mortalidade aos problemas do SNS?” Essa pergunta tem sentido em abstracto, mas imaginemos que ela era formulada de outra maneira: “Não se deverá esse aumento de mortalidade à greve dos médicos?” Na verdade, a greve dos médicos é um “problema do SNS”, mas a forma como é apresentada a causalidade da mortalidade não é inocente. Aliás, a greve dos médicos nunca aparece como causa, ao contrário da greve dos ferroviários para as paragens de comboios. No entanto, nunca houve tantos simpatizantes das greves e de movimentos como o dos polícias desde que contribuam para atacar o Governo. Imagino que, se a “Aliança Democrática” governar, as greves e movimentos reivindicativos de trabalhadores tornar-se-ão de novo malditos e outras greves como a dos médicos não existirão.

Aliás quase todas as peças sobre os “problemas do SNS” que abrem noticiários, muitas vezes de formas casuística para ter um feito cumulativo, não têm qualquer paralelo com a informação comparativa com o sector privado. Os tempos de espera nos hospitais privados raramente são citados, nem referido como é feita a triagem de doentes não rentáveis devolvidos aos hospitais públicos, e o que aconteceu durante a pandemia.

Outro exemplo é a queda de favor da Iniciativa Liberal, que passou de dada dos jornalistas, ocupando o antigo lugar do Bloco, ao anátema desde que a sua actuação autónoma pareceu prejudicar os interesses da “Aliança Democrática”. Esta antipatia para com a Iniciativa Liberal é interessante, tanto mais que ela não parece traduzir-se ainda em sondagens. O Chega é valorizado pelos resultados nas sondagens, sejam quais forem os seus conflitos internos, a IL vê os seus problemas internos hipervalorizados, mesmo que eles não pareçam afectar o eleitorado.

Todos os dias em múltiplos casos, antigos ou modernos, se verifica esta duplicidade e isso favorece uma das razões da crise da nossa democracia: aumenta a radicalização, as notícias deixam de ser vistas pelo seu valor factual, mas como partes de um combate político entre “nós” e os “outros”. Isto é o habitual nas redes sociais, não devia ser no jornalismo.»

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