15.1.24

Chega, o voto de quem desistiu da exigência

 


«Com seis congressos em quatro anos, vários deles por irregularidades internas, o Chega é compensado pela sua incompetência com direito a fins de semana de diretos nas televisões em cada um deles. É um prémio ao infrator porque as televisões sabem que a extrema-direita é como o acidente de carro: uma tragédia que dá audiências.

Quando ouvimos os debates que entusiasmam os congressistas do Chega percebemos que não é verdadeira a ideia de que são eles que respondem, mesmo que de forma populista, aos anseios das pessoas. Grande parte das moções e intervenções não são sobre o SNS ou os salários baixos. O que excita aqueles delegados são as casas de banho mistas ainda por implementar, a “ideologia de género” com que o cidadão comum não se relaciona fora das redes sociais, o hino nas escolas. Já nem me interessa muito o perfil reacionário desta mundividência. Ela apenas exibe o vazio de ideias quanto ao que realmente afeta a vida dos portugueses.

Mas como o Chega se quer apresentar como partido de poder, lá teve de avançar com umas propostas para que isso fosse dito sobre ele. Uma foi a reforma mínima garantida equivalente ao salário mínimo, até 2028. A proposta representaria, segundo o Chega, um acréscimo de seis mil milhões de euros anuais.

Estamos a falar de 66 vezes o valor do aumento salarial dos médicos para 2024, mais de 20 vezes a reposição integral do tempo perdido na carreira docente ou 11 vezes o custo fiscal do IVA zero nos bens alimentares essenciais. Para além da injustiça de ver quem recebe o salário mínimo descontar e subsidiar no mesmo valor as reformas de quem não contribuiu, porque viveu num tempo em que muitos trabalhadores rurais não o faziam mas também porque não quis, esta irresponsabilidade colocaria em causa a reforma de todos em meia dúzia de anos.

Tomando como bons os números de André Ventura, o Fundo de Estabilização da Segurança Social teria reservas para pouco mais de 4 anos para pagar uma medida com este impacto. Nem chegariam os atuais excedentes da Segurança Social, para o qual contribuem de forma decisiva os imigrantes que o Chega diz viver à custa de apoios que não existem. Sem a “almofada” criada para compensar o envelhecimento da população, teriam de ir ao Orçamento de Estado, aumentando ainda mais os impostos. Na realidade, se a ideia é equiparar a pensão mínima ao salário mínimo, e cumprindo a lei atual, teria de ser o OE a financiar, como faz hoje com as pensões mínimas. Como o Chega alinha com muitas propostas fiscais da IL, ninguém sabe onde iriam buscar o dinheiro. Quando respondem que seria ao que se perde com a corrupção, com números fantasiosos que duplicam de um dia para o outro, percebemos que não têm qualquer intenção de cumprir a promessa. Acabar com a corrupção em quatro anos é coisa que nenhum Estado alguma vez conseguiu. Isto partindo do princípio que um antigo inspetor do fisco que se passou para o privado para ajudar a contorná-lo seria o herói para esta empreitada.

Quando propôs entregar 420 milhões supostamente gastos pelo Estado com o que chama de “ideologia de género” para criar um fundo para as forças de segurança, Ventura sabia que ninguém minimamente informado deixaria de torcer o nariz ao ouvir aquele extraordinário número. O valor inclui, como bem recordou Paulo Baldaia na SIC Notícias, o reforço do abono de família, o alargamento gratuitidade das cresces, a gratuitidade dos passes para sub18 e sub23 e medidas que ele nunca se atreveria a anunciar o cancelamento. A notícia do “Público” até faz referência ao reforço do Complemento Solidário para Idosos. O mesmo Ventura que quer aumentar cegamente os pensionistas tem como uma das primeiras medidas não reforçar o CSI aos que, comprovadamente, não têm outra forma de rendimento e subsistência.

Tudo o que está nesse pacote que ele mete, sabe-se lá por quê, na promoção da “ideologia de género”, são medidas que, direta e indiretamente, contribuem para objetivos da promoção da igualdade de género. Podia-se dizer que não sabia do que estava a falar e é apenas incompetente. Mas sabia, porque a utilização abusiva deste número já tinha sido desmontada em outubro. Só que ser apanhado numa mentira nunca foi um problema para os dirigentes do Chega. Confrontado com isto, André Ventura chutou para canto, mandou uma laracha e seguiu em frente.

A pergunta que muitos eleitores tentados a votar no Chega fazem é se Ventura é o único que mente e faz promessas que não tenciona cumprir. É claro que não é o único. Só que o descaramento na mentira, a total despreocupação perante a sua evidência, sendo a caricatura dos piores políticos que critica, demonstra que a credibilidade do que promete lhe é indiferente. E nada diz mais sobre como um governante tratará os cidadãos do que a evidência que despreza a inteligência dos seus eleitores.

Os dirigentes do Chega acham que os seus eleitores são estúpidos? Se achassem, seriam eles os estúpidos. Acham, e têm razão, que o voto no Chega é menos exigente do que o voto em qualquer outro partido. Não são os eleitores que são menos exigentes, é este voto específico. Não chega a ser um voto de protesto. É um voto de desistência. Quando dizem que os outros não são melhores, argumento que nunca usariam para justificar o voto em qualquer outro candidato, estes eleitores confessam a desistência. Se prometer que viveremos todos num resort em Marte daqui um ano não perderá um voto com isso. Assim como Trump sabia, e disse-o, que poderia matar uma pessoa na 5ª Avenida que não perderia um voto, Ventura sabe que não será escrutinado pelos seus eleitores com os mesmos critérios que usam para outros políticos.

As pessoas não se deixam enganar quanto à capacidade do Chega cumprir as promessas que faz. Mas são enganadas pela ideia de que farão tremer o “sistema”. Farão tremer quem, exatamente? As famílias mais ricas do país e a rede de empresários que financiam o Chega? Alguém que tenha poder económico neste país? Para essas, a extrema-direita, que direciona a fúria do descontentamento para os de baixo, nunca foi um problema.

Quem paga o preço do impasse político criado pelo crescimento de partidos como o Chega, cujo verdadeiro programa eleitoral é mais liberal do que o da IL (o primeiro, que apresentaram e depois esconderam, parece o de Milei na Argentina), é o cidadão comum. Quando os cidadãos desistem da democracia e da exigência perante os que elegem não é o “sistema”, se o entendermos como sinónimo de quem tem o poder, que sofre. São os debaixo. Porque os únicos que realmente precisam democracia são os que não têm outro poder para além do voto.»

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