9.1.24

Dos presos políticos aos presos da política

 


«Naquele café, o lugar mais longe disponível, virado para a porta, era dela. Todos os dias, das 10.00 às 16.00, Ofélia, perto dos seus 80, trazia um cesto de verga com vários tamanhos de collants de vidro. Se fosse necessário, o cesto poderia ser mera decoração - depende da intenção de quem entrasse -, mas para todos nós, e ainda mais para ela, era o seu ganha-pão, para manter uma vida em que a reforma não existe.

A posição no café é de quem se habituou a ser vigiada. Noutros tempos percorria as ruas de Lisboa na venda. Hoje fica só onde o corpo deixa. Fora do seu bairro, não conseguiríamos associar a candura e aura de avozinha de Ofélia a estadas na Prisão das Mónicas nos Anos 50 e 60 do século passado. No resto da cidade não acharíamos que a venda desse direito a prisão. Na cidade, não se acredita em partes não-cidade, cuja pobreza é criminalizada. Os filhos de Ofélia foram presos. Os netos de Ofélia foram presos.

No bairro da Ofélia trabalhei com jovens. Ao fim das primeiras semanas de intento deixei de ver o Joel. Perguntei por ele. Tinha sido identificado na rua e como pendia um mandado de captura, foi encaminhado para um estabelecimento prisional para cumprir cinco anos de pena.

Perguntei o que tinha feito, ninguém sabia, nem ele. Deve ter recebido várias cartas da investigação criminal, do tribunal, mas, no prédio onde habita, as caixas de correio estão partidas. Só foi notificado uma vez para ir à PSP, em Alcântara. Não foi, teve medo do desconhecido. Joel foi acusado por ter sido identificado por uma vítima de assalto num dossier de fotografias na esquadra. O assalto foi feito de mota e o perpetrador tinha capacete.

Fiz girar a palavra para que todos os que recebam cartas e notificações viessem falar comigo. Para cada um era uma maratona. Às vezes bastava ir com eles às chamadas de Inquérito da PSP para mais nada avançar. Noutras, agarrar no processo, telefonar para a Ordem dos Advogados, exigir um telefone tangível de um “oficioso”, agendar uma conversa, pensar numa estratégia.

Nenhum dos casos deu prisão efectiva. Muitos caíram e para os outros, a articulação entre tribunal, Direcção-Geral de Reinserção Social e actores no terreno foram suficientes para medidas mais produtivas de reinserção.

Acontece que para muitos moradores destes bairros, e em especial para os jovens já saídos da escola, o único contacto que têm com o Estado é a polícia. Contam-se às dezenas as vezes que, por dia, as forças policiais circulam por cada um desses territórios, quer em carros descaracterizados ou com carrinhas das intervenções especiais, sem que, no entanto, haja estatísticas criminais que validem tamanha oferta. Há apenas percepções e categorizações sociais formais: número de imigrantes, abandono escolar, beneficiários de prestações sociais, que legitimam a criação de Zonas Urbanas Sensíveis para a PSP - o que, na prática, é a aplicação de uma lei marcial em que todos os moradores são suspeitos: criminaliza-se a pobreza e a racialização.

Aquilo que não se conta às dezenas nesses bairros são: espaços jovens; escolas equipadas e de qualidade; centros comunitários; sítios de acolhimento para as crianças, enquanto os pais estão a trabalhar; habitação digna; equipamentos colectivos públicos (parque infantil, ringues desportivos, parques); transportes de qualidade; espaços e financiamento disponível para as associações locais e fóruns de diálogo entre moradores e poder público.

Os filhos e netos têm mais escolaridade que a Ofélia, mas apenas na proporção do que os tempos exigem. Ofélia era analfabeta, o filho tinha a 4.ª classe e o neto o 7.º ano incompleto. Todos foram e são oficialmente desocupados, ou seja, empurrados para a precariedade e informalidade económica. Após três gerações, estão todos no mesmo lugar da sociedade, aquela que não acede aos direitos universais consagrados.

Por ventura, os 20 mil euros que o estado gasta anualmente por cada cidadão encarcerado seriam melhor aplicados em dar a equidade necessária para que esses direitos universais possam ser acessados por todos e não na criminalização de um ponto de partida que não escolhemos. Deixámos de ter presos políticos, mas ainda temos os presos da ausência da política pública.»

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