26.1.24

O carma é lixado

 


«Luís Montenegro lançou, na quarta-feira, um cartaz contra a “corrupção e falta de ética”, seguido de “já não dá para continuar”, que não passa de um sinónimo envergonhado de “chega”. Azar dos Távoras, estava o outdoor a ser montado em Lisboa e o presidente da Câmara do Funchal a ser detido e a casa de Miguel Albuquerque a ser revirada pela polícia, na Madeira. O imprudente oportunismo do PSD nem teve tempo para envelhecer mal. Merecido castigo a quem teima em não perceber quem ganha com o timing eleitoral de uma Justiça com espetáculo a mais e condenações a menos.

Pela minha origem, sempre denunciei a promiscuidade entre a política e os negócios na Madeira e até fui processado por isso — quem se queixa de oito anos de um partido à frente do país deve imaginar o que são 50 anos numa ilha. Não há como Montenegro se pôr ao largo, depois da colagem descarada e trapalhona à vitória do PSD na Madeira. Só que a política não pode ser reduzida a um jogo de espelhos onde todos perdem. Incomoda-me o de sempre: a comunicação social continental foi convocada, na véspera, a deslocar-se à Madeira e a acompanhar o espetáculo judicial para o qual foram mobilizados 270 inspetores e magistrados, transportados num avião militar, no que parece uma desproporção de meios. A convicção é que, se não passa na televisão, a justiça não se faz. Sobretudo a eleitoral. É ver como as buscas da Operação Tutti-Frutti regressam sazonalmente, sempre coladas a eleições. Se isto se traduzisse em condenações, ainda se tolerava. Assim, serve para desgastar a democracia.

Desde José Sócrates que a direita, para não se concentrar nas suas propostas antipopulares, adotou a superioridade ética face ao PS como o principal substrato do seu discurso. Foi nessa cultura que se formaram, dentro do PSD e do CDS, os dois spin-offs “regeneradores”, Chega e IL. E há uma década que a direita se alimenta do exibicionismo da Justiça. Uma coisa é a Justiça investigar crimes, como deve acontecer no Estado de Direito, outra é o aproveitamento partidário, sem esperar por provas ou condenações, de operações mediaticamente preparadas num tempo sempre politicamente oportuno.

Apesar de nunca ter hesitado em aproveitar a recorrente coincidência do calendário da Justiça com o eleitoral e a espetacularização mediática de momentos da investigação, o PSD tornou-se, subitamente, amante da presunção de inocência. Miguel Albuquerque explicou, em novembro, que era impossível António Costa continuar a governar. Sobre si mesmo fez a devida “pedagogia democrática” e explicou: “Ninguém, num Estado de Direito, pode ser suspeito. Pode ser inquirido, e para ser inquirido precisa de ter o estatuto do arguido.” Poucas horas depois foi constituído arguido. Demitiu-se? Também não. Se Costa ter arguidos no Governo e haver buscas era “muito mau” para a “credibilidade das instituições democráticas”, ele próprio ser arguido “não diminui” em nada os seus direitos políticos.

Luís Montenegro, que mandou pôr cartazes na rua para cavalgar o ambiente criado pela investigação que levou à queda do Governo, mantinha, até à hora a que escrevo, a confiança política em Albuquerque. Tratou este episódio como uma mera “perturbação na atenção política dos portugueses”. Quando, este mês, o Expresso lhe perguntou se se demitia caso viesse a ser arguido, deu uma resposta absurda para quem acredite na presunção de inocência, o que implica que até o mais honesto pode ser arguido: “Não vai acontecer.” Ao não retirar a confiança em Albuquerque, ficamos a saber que, no lugar de Costa, que nem arguido é, não se teria demitido. Em novembro disse que o Governo não tinha “nenhuma condição para continuar”. Que estava “na hora de penalizar e responsabilizar sem apelo nem agravo a reincidência de uma organização partidária que dá mostras muito facilmente de ceder a esquemas de compadrio político”. Agora diz que “as diferenças são mais que muitas” nas duas histórias. São duas: Costa não é arguido e Albuquerque é do PSD. É verdade que, por agora, Montenegro aplica a Albuquerque as regras que decidiu para os seus deputados. O problema é não as ter aplicado aos governantes do PS. Sendo que, do líder socialista, ouvimos, em plena campanha, a ponderação que faltou a Montenegro no dia 7 de novembro.

Conheço a Madeira e sei o que a casa gasta. Até por isso me espanta a pontaria de, em meio século de uso do Estado para proveito privado e condicionamento da comunicação social, esta investigação cair em vésperas de eleições. Quem procura a condenação em tribunais investiga. Quem procura o caos político, porque acredita que a sua “justiça” prevalecerá ao que se decida em tribunais, organiza excursões de jornalistas para apreciar o espetáculo judicial em vésperas de eleições. Há culpas dos partidos. Quando não afastam, independentemente de burocráticos códigos de ética, quem sabem que tem de ser afastado. E quando não resistem a surfar as ondas do justicialismo. Como se viu, a fatura acaba sempre por chegar. Quem julgava que o alvo era o PS enganou-se. A cultura que substitui os tribunais pelas câmaras de televisão vai muito além desses cálculos.»

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